São Paulo, terça-feira, 24 de dezembro de 1996
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Feliz Natal, Brasil

FREI BETTO

Natal, misto de ansiedade e frustração. Em algum recanto de nossas nostalgias inconscientes, emerge um gosto de sol. Os símbolos da árvore, o presépio com o menino Jesus, a Virgem e os pastores ressoam na criança que já não somos e, no entanto, nos habita. À semelhança de Proust, tateamos em busca de alegrias desvanecidas, sabores atávicos, rostos queridos e perdidos.
Há também um gosto de sal. A reificação das relações humanas, o consumismo compulsivo e o medo ao dom de si nos fazem gravitar em torno do espectro de Papai Noel.
Dar algo para não se dar, reter o afeto hermeticamente embrulhado, mil cordas a nos amarrar ao próprio inferno que, como definia Dostoiévski, é o sofrimento de não poder mais amar. Cada presente atesta o quanto se sonega a si mesmo. Damos, sim, o recibo de quanto andamos em débito com o desafio de amar sem medo e pudor.
A festa de Natal se originou no século 2, quando teólogos pretenderam determinar a data do nascimento de Jesus, não indicada nos Evangelhos.
João Batista teria sido concebido no equinócio de outono e nascido no solstício de verão.
De acordo com Lucas, 1, 26, Jesus teria sido concebido seis meses antes de João, ou seja, no equinócio da primavera do hemisfério Norte (25 de março). Teria, pois, nascido a 25 de dezembro, quando no Oriente o Sol retorna a seu movimento de ascensão.
A segunda hipótese, mais provável, faz do Natal a versão cristã da festa pagã do "deus sol invencível" ("natale solis invictus"), introduzida no ano 274 pelo imperador Aureliano e fixada no solstício do inverno europeu, a 25 de dezembro.
Para o prólogo do Evangelho de São João, Cristo é "a luz do mundo". Assim, a fé cristã resgata a comemoração pagã ao reforçar, nas primeiras comunidades da igreja, a convicção de que celebravam a festa do verdadeiro sol.
Hoje, novo resgate é operado pela figura pagã e mercantilista de Papai Noel, que sacramenta a desigualdade social ao ofertar presentes às crianças bem-nascidas e deixar as pobres de mãos vazias (exatamente o inverso do canto de Maria no "Magnificat", em que o Senhor "despede os ricos de mãos vazias e sacia de bens os famintos").
O Natal cristão herda o espírito de justiça e de reconciliação do sistema sabático e do ano jubilar judaicos, nos quais as dívidas eram perdoadas, os escravos libertados, as terras equitativamente redistribuídas. Herança hoje deturpada pela troca de presentes, a camuflar a resistência ao encontro de pessoas. Deixa-nos essa amarga nostalgia que perdura natais afora, sequiosa de alegria sincera e de efusão do espírito. Vinhos, nozes e perus não aplacam essa fome de beleza que abre um oco no centro do coração.
Natal é renascer, a começar por si mesmo, a partir desse núcleo do plexo solar em que a intuição captar a nossa verdade mais íntima. Nada mais desafiador do que a fidelidade a si mesmo.
No entanto, tememos a solidão, porque ela nos traz o silêncio, e, de dentro dela, ressoa a voz que repete o verso de Antônio Maria: "Não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí". E é "por aí" que temos ido, sem forças para mudar de rumo.
O Natal se apresenta também como momento coletivo de começar de novo. Somos hoje uma nação grávida de si mesma.
No entanto, o Brasil não renasce, como Jesus, na manjedoura dos pobres, lá onde se situam 100 milhões de brasileiros excluídos de benefícios e direitos econômicos e sociais elementares, como emprego, educação e saúde.
Renasce para uns poucos, graças à elitista articulação por cima, que assegura a continuidade dos propósitos herodianos do Consenso de Washington, sob o ingênuo otimismo de quem acredita que em balcão de lojas se compra qualidade de vida. A vida é dom, e a qualidade, amor.
Apesar de tudo, feliz Natal, Brasil.

Carlos Alberto Libânio Christo (Frei Betto), 51, frade dominicano e escritor, é autor de "O Vencedor e Alucinado Som de Tuba" e "A Obra do Artista -Uma Visão Holística do Universo", entre outros livros.

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