São Paulo, quarta-feira, 25 de dezembro de 1996
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A culatra do plebiscito

ELIO GASPARI

O presidente Fernando Henrique Cardoso está definitivamente contaminado pelo bicho do continuísmo. Ele chama esse bicho de reeleição e argumenta que seria um casuísmo proibi-lo de disputar o novo mandato. Tudo bem. Tanto ele quanto seus fâmulos, do computador do Banco do Brasil ao balcão de votos do Congresso, podem dizer o que quiserem, mas em nenhum momento se discutiu a sério a conveniência da adoção do princípio constitucional da reeleição.
Trata-se de um princípio que poderia ter dado um mandato de 10 anos para José Sarney, de oito para Leonel Brizola e 16 para a dupla Orestes (Banespa) Quércia e Luiz Antonio (Carandiru) Fleury. Infelizmente, o que se está discutindo é outra coisa: fernandenrique precisa de mais quatro anos de mandato. Pode ser, assim como pode ser que ele precise de uma primeira edição encadernada dos Sonetos de Camões.
Em termos republicanos, a questão é saber se convém à sociedade brasileira incluir no seu arcabouço constitucional a reeleição dos ocupantes de cargos executivos. Isso nada tem a ver com o problema de fernandenrique.
Há muita gente que pensa ser necessário colocar oito anos de mandato na sua árvore, e essas pessoas merecem respeito. O que esse tipo de raciocínio não merece é a caracterização republicana. É uma necessidade do príncipe. Fernandenrique deve continuar pelos mesmos motivos que Luís 15 continuou. Ele deve continuar porque encarna uma virtude monárquica, individual. Vale para ele e só para ele. Quem duvida disso, que responda: que tal Lula reeleito?
Mesmo sendo de essência monárquica, não se pode dizer que essa seja uma opinião basicamente errada. Um dos lances de maior genialidade da classe política brasileira foi proclamar a maioridade de d. Pedro 2º aos 14 anos, no golpe de 1840. Talvez uma das maiores bobagens permitidas por essa mesma plutocracia tenha sido não espichar o mandato do marechal Castello Branco em 1966, permitindo que um general arteriosclerótico, oportunista e bagunceiro (Arthur da Costa e Silva) empalmasse o poder e acabasse precipitando-o numa ditadura.
Dentro do mais puro espírito natalino, aceite-se que fernandenrique deve ter direito a disputar a reeleição. Como? Pela aprovação de uma emenda constitucional. Sem dúvida, mas até agora ela paralisou o governo.
Mais que isso. Atiçou um balcão de negócios que levou o presidente do Banco do Brasil (o maior banco quebrado do mundo) a se comportar como um erudito vereador de município assolado pela contravenção. Conduziu a liderança do governo no Senado a uma feliz associação com meia dúzia de espertalhões, varrendo para baixo do tapete a CPI dos precatórios inexistentes e das comissões existidas. Vinculou o Planalto a malfeitorias jamais imaginadas no imaginário do tucanato.
Para remediar os efeitos desse balcão parece que a convocação de um plebiscito seja remédio eficaz. É. Desde que a consulta popular fique restrita à reeleição do presidente.
Ou se faz um plebiscito exclusivo, ou se paroquializa a restauração monárquica. Um plebiscito que envolva a reeleição dos governadores estadualiza o problema. Ganha uma lata de comida de gato importada (8% de alíquota, contra 30% para os computadores) quem conhecer um bípede empenhado na reeleição de Mário Covas em São Paulo ou de Marcello Alencar no Rio de Janeiro.
Estendendo-se a consulta à reeleição dos prefeitos, ganha duas latas de comida de gato quem conhecer alguém interessado em reeleger Luiz Paulo Conde ou Celso Pitta. (Não vale dizer que o que está em questão é o princípio, pois nesse caso, a tradição constitucional exigiria que a reeleição não beneficiasse os atuais donatários. A brincadeira só tem graça se acabar dando mais quatro anos a FFHH.)
Um plebiscito que coloque os governadores e prefeitos na mesma reeleição de fernandenrique poderá resultar na derrota da proposta pelo pior dos motivos. Em 1982, tentando domesticar o eleitorado, o Palácio do Planalto criou um sistema pelo qual o cidadão era obrigado a votar num só partido, tanto para governador quanto para deputado estadual. Os sábios do palácio (que só medem a própria insensatez quando saem do poder) achavam que os governadores puxariam os votos. Deu o contrário, as bases municipais puxaram as preferências e o governo quase foi defenestrado.
Um plebiscito que inclua a reeleição dos prefeitos municipaliza uma questão que, mesmo mal posta, é federal. Nesse caso, fernandenrique arrisca perder a votação em Feira de Santana porque a coligação partidária local, mesmo adorando-o, não quis abrir uma brecha que permitisse a reeleição do prefeito.
Seria preferível que o presidente tivesse assumido o poder com a humildade de quem vai ficar quatro anos e, por conta disso, permitisse o surgimento de candidaturas dentro da aliança governista. Essas são águas passadas. FFHH esterilizou o terreno amigo e só produziu uma liderança, a de Paulo Maluf.
Tendo-se feito o que está feito, o pior que pode acontecer à banda boa do governo d'El Rey será a produção de uma crise política, com um plebiscito mal posto que lhe negue a maioridade e jogue o país numa crise política que ele haverá de atribuir à oposição (que oposição?), mas terá sido fabricada exclusivamente pelos erros de avaliação do professor Fernando Henrique Cardoso.

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