São Paulo, sexta-feira, 27 de dezembro de 1996 |
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Uma noite dos anos mais antigos do passado
CARLOS HEITOR CONY
O menino estava na janela e olhava a noite. E a noite se tornou manhã e tarde, depois noite outra vez -e assim sucessivamente, durante muitos e muitos anos: os anos do passado. E diante do menino passaram as coisas, passou o tempo e passou o mundo: os mascarados do Carnaval, o sorveteiro e a leprosa que pedia esmolas, o lenço encardido escondendo o rosto desfigurado. E numa noite de junho dos anos mais antigos caiu um balão no jardim, o menino ficou deslumbrado com o fantasma iluminado que desceu da noite e escolheu o seu jardim, e nele pousou, trêmulo, até que o pai apagou o balão e o entregou ao menino. O balão tinha o cheiro da noite e do sereno, era manso e frágil como um pássaro exausto que não podia mais voar. E o guarda-noturno que passava pelas noites mais antigas do passado vinha de longe com seu apito cortando o silêncio do mundo, cortando o sono do menino. Depois se aproximava e logo se afastava, perdendo-se na noite antiga do passado. E o guri que vendia amendoim torradinho, com a lata cheia de brasas vermelhas, vinha e ia correndo para mantê-las acesas e vivas, soltando fagulhas que caíam na calçada e iluminavam sua silhueta de saci contra a noite -noite antiga, noite de passado. Depois pela janela do menino passou a catedral, imensa nave, toda de mármore, fosforescente e solene, flutuando no espaço. E de dentro dela vinham os cânticos das Vésperas, os hinos das Matinas, e assim sucessivamente o menino ficou na janela esperando a hora de as coisas acontecerem nele e no mundo. Sim, mudaram o jardim, virou garagem para o primeiro carro da família, o balão apodreceu em sua carne de papel fatigado, a catedral -nave de mármore- desapareceu levando para o fundo da noite os hinos e cânticos que caíam do espaço como fagulhas da lata daquele guri que passava correndo, correndo e gritando: "Amendoim torradinho!", mas deixando um rastro de luz na imensa noite, no infinito passado. O menino continuou na janela, vendo passar os mascarados dos carnavais, as caveiras esganiçadas, os pierrôs com bandolins prateados, o rosto banhado de luar. Na janela continuou e lá estava, diante dele, a flâmula grená com o leão de ouro, os músicos da praça São Marcos tocando aquelas canções dos anos 30 que penetravam no café Florian, nos postais de Guardi, no lustre murano do hotel Danieli. A gôndola, esguia e fúnebre, passa pela casa de Wagner mas não é Wagner que o menino ouve, são Vivaldi e Perosi, que viveram ali, atrás daquela pequena ponte descascada pelo tempo que apodreceu a cidade, tempo que, quase lama, agoniza na laguna cansada. Na janela do menino, mais uma vez surge a enorme catedral de mármore, verde e rosa agora, como um balão colossal. É Santa Maria dei Fiori, onde a moça de olhos verdes segurou a sua mão e compreendeu -mas havia pouco tempo. E o tempo, agora, era uma canção estendida no meio da noite mais antiga do passado. Ele fora livre para questionar as regras do mundo e agora o puniam, levando-o para a cela escura onde a janela dava para o nada. O menino então se habituou a olhar para dentro de si mesmo, e foi dentro de si mesmo que ouviu a moça que lhe pedia o verso do poema mal sabido: "...E assim ficamos no silêncio pouco a medo, naquela hora em que o subúrbio tem segredo e descem coisas -certas coisas- do luar". Com ou sem janela, chegaria a hora em que o chamariam para dentro. E as luzes seriam apagadas, o silêncio tomaria conta de todas as coisas, da janela e do menino. E ele não poderia dizer as Grandes Palavras. Nem mesmo contar para a moça de olhos verdes aquela tarde na piazza Navona, a fartura das águas que caíam, verdes, das fontes de mármore. E aquele sino que ficou boiando no espaço, pássaro de bronze, de invisíveis asas. O sino que o menino ouvia nas manhãs do claustro, a batina suada cheirando a incenso e pecado. Sino que ficou marcando a hora das coisas, de todas as coisas, a hora das horas. Num truque que aprendeu sozinho, ele saía de si mesmo e se misturava com os fantasmas, confundindo-se com eles, a catedral de mármore, enorme, rolando no espaço da noite, o balão fatigado, o pierrô com seu bandolim prateado, o rosto branco, branco de luar. E tudo pareceu voltar de repente: a janela, o jardim coberto de orvalho, a noite solitária, noite contra noite, noite dos anos mais antigos do passado. Texto Anterior: CLIPE Próximo Texto: Males da América aparecem em 1996 Índice |
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