São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
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Na contramão de Scarpia

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - O barão Scarpia, personagem de Sardou eternizado por Puccini, dá em cima da mulher que deseja -e nada o detém. Sua técnica de paquerar é a mesma de todos os vilões melodramáticos: "Há mais forte sabor na conquista violenta do que no melífluo consenso".
Terminou mal. Sarah Bernhardt, principal intérprete do drama e cuja atuação fez Puccini musicar a peça de Sardou, dirigiu-se em cena a si mesma e criou um dos maiores momentos do palco universal: ela finge se submeter a Scarpia, mas, aproveitando uma bobeada dele, mete-lhe o punhal nas costas.
Até aí morreu néris. Cenas assim eram e continuam banais no teatro e no cinema. Mas Sarah Bernhardt era Sarah Bernhardt. Ela passa a contracenar não mais com Scarpia, mas com o cadáver dele. Apesar de morto, Scarpia continua em ação. Solenemente, ela coloca dois castiçais em torno do cadáver. Cobre-o com o manto. Estatelado no centro do palco cujas luzes vão se apagando, o tirano morto é sombriamente iluminado pelos dois castiçais.
Sarah achou que era pouco. Apanha um crucifixo de prata e, depois de alguma hesitação, coloca-o no peito de Scarpia, mais por desprezo do que por piedade. Olha-o com nojo.
A "conquista violenta" com que ele a ameaçara termina com a recusa violenta.
Ao musicar o trecho, e sem ter uma Sarah Bernhardt em cena, Puccini sentiu que precisava de alguma coisa a mais e introduziu a frase -que é declamada, mesmo sem música, em todos os palcos líricos do mundo: "E avvanti a lui tremava tutta Roma". E diante dele tremia toda Roma.
A idade não me deu oportunidade de ter visto a grande Sarah. Mas em criança, quando ouvia a ópera na vitrola do pai, que sempre se arrepiava como se a ouvisse pela primeira vez, eu decidi, para uso próprio, recusar a conquista violenta e praticar sempre que possível o melífluo consenso.

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