São Paulo, segunda-feira, 30 de dezembro de 1996
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Peru, frango e imposto inflacionário

JOÃO SAYAD

No fim do ano deveríamos falar de festas com peru e desejos para 1997. Mas o ano não acaba, apenas continua, assim como as idéias de sempre. Que Cingapura é liberal, que o Estado é culpado por tudo, e que o imposto inflacionário é mal terrível de que nos livramos.
O fim do ano trouxe várias matérias sobre os efeitos benéficos do Plano Real sobre a distribuição de renda. A "Veja" publicou gráfico que mostrava maior participação da classe média na renda total. Na semana seguinte, publicou longo artigo afirmando que a "correção monetária" corrigia os ricos e a corrosão inflacionária corroia os pobres.
De qualquer forma, são boas notícias sobre a distribuição de renda. É muito provável que a distribuição de renda tenha melhorado. Mas por quê?
A explicação do governo, a explicação popular e a explicação da "Veja" coincidem: o fim do imposto inflacionário.
O imposto inflacionário arrecadava no final da inflação US$ 2,4 bilhões por mês, ou seja 40% ao mês de inflação vezes US$ 6 bilhões de meios de pagamentos (depósitos à vista e papel moeda em poder do público).
Hoje, arrecada 1%, a taxa de inflação, vezes US$ 23 bilhões (saldo dos meios de pagamento em outubro), ou seja US$ 230 milhões por mês.
Se a distribuição de renda melhorou, deve-se também a outras razões.
As pessoas que têm renda menor gastam mais em consumo. É fácil entender: quem ganha R$ 100 ou R$ 1.000 por mês acaba gastando mais do que 90% da sua renda com a sobrevivência diária: aluguel, alimentação e transporte urbano. Se e quando sobrar alguma coisa, provavelmente é gasta com algum reparo em casa, a compra à prestação de um eletrodoméstico ou eletrônico. Deve poupar muito pouco, ou seja, deixa de consumir parcela muito pequena da sua renda.
Quem ganha US$ 10 mil ou US$ 100 mil por mês gasta mais do que o suficiente para viver: paga o aluguel da casa que quer e gosta, come bem e até faz dieta, manda os filhos para a melhor escola, tem carro importado e uma televisão em cada quarto. Sobra renda no final do mês -que não é gasta e, portanto, é, por definição, poupada.
O que aconteceu depois da implantação do Plano Real? O dólar ficou sobrevalorizado e passamos a importar mais do que exportamos.
Dólar sobrevalorizado implica duas coisas: gasolina mais barata, milho mais barato, e, consequentemente, frango mais barato. Exporta-se menos e importa-se mais, ou, em outras palavras, consumimos mais e mais barato do que consumíamos antes.
Se em vez de déficit comercial tivéssemos superávit comercial, como antigamente, teríamos um efeito negativo sobre a distribuição de renda. Pois um bóia-fria trabalharia oito horas por dia, mas duas ou três horas desse trabalho seria trabalho usado para soja que é exportada e vira dólares, mas não pode ser consumida pelo bóia-fria; o metalúrgico produziria automóveis com oito horas diárias de trabalho, mas uma parte dos automóveis seria exportada, sendo, portanto, dólares de propriedade da montadora e não automóvel comprado por algum outro trabalhador brasileiro.
Portanto, superávit comercial aumenta a parcela da renda não consumida e melhora a renda dos capitalistas; déficit comercial favorece o consumo, melhora a renda de quem gasta relativamente mais com o consumo, ou seja, os trabalhadores.
Esse é o efeito relevante sobre a distribuição de renda, quando consideramos lucros e salários.
A diferença entre exportações e importações era da ordem de US$ 10 bilhões positivos em 94 e será da ordem de US$ 5 bilhões negativos em 1996, depois de US$ 3 bilhões negativos em 1995. A renda dos trabalhadores, portanto, poderia aumentar quase US$ 15 bilhões nos dois últimos anos, cerca de 2,5% do PIB.
Falta considerar por que aumentou a parcela da classe média no produto. Com déficit comercial e maior desemprego, menos indústria e menos agricultura, é difícil entender.
Deve haver alguma explicação -talvez tenha aumentado a renda dos franqueados de cadeias de "fast food", operadores de micro, vendedores de telefones celulares ou os trabalhadores informais ganham mais do que os formais. Difícil de analisar.
Se o ganho de renda dos trabalhadores decorre do déficit comercial, as conclusões são pouco animadoras.
O déficit comercial tem sido financiado por meio de taxas de juros muito altas e mais dívida pública. O consumo maior e a preços menores de hoje terá de ser pago em algum dia no futuro, com mais impostos, pagos por quem -trabalhadores ou capitalistas?
Além disso, os gastos com juros maiores acabam reduzindo gasto do governo em educação, transportes, saúde e outras coisas que são mais importantes para os pobres do que para os ricos, e, portanto, pioram a distribuição de renda.
Finalmente, se não podemos ter déficits comerciais para sempre, em algum momento no futuro a situação tenderá a se reverter.
Não ter inflação é condição necessária para quase tudo. Portanto, somos gratos aos dois anos e meio de estabilidade que estamos vivendo. Mas a ideologia tem atrapalhado bastante: será que a melhoria da distribuição de renda também não é populismo à custa da indústria, agricultura e juros altos?

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