São Paulo, terça-feira, 31 de dezembro de 1996 |
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Para lembrar do Peru e esquecer a Argentina
MARILENE FELINTO
No Peru, a tristeza cresce, eleva-se à altitude dos Andes, aos altiplanos onde subsistem os camponeses pobres, tocando suas lhamas. Ou desce para Lima, a capital cinzenta. Um entre dois peruanos vive abaixo do limite da pobreza. Como raramente chove em Lima -por conta de um fenômeno meteorológico e geográfico-, os prédios, os carros, as árvores, tudo é sempre coberto por uma fuligem cinzenta. A cidade feia se arrasta sob rodas de carros e ônibus velhos, verdadeiras sucatas ambulantes (por falta de dinheiro e de indústria automobilística). Lima vive em outro tempo. Parece que tudo o que o Peru tem para mostrar ao mundo é miséria e anacronismo histórico -o ataque dos guerrilheiros do Tupac Amaru à residência do embaixador japonês em Lima soa a coisa dos anos 70. Sequestro e guerrilha não combinam com a mão de cal que o neoliberalismo veio passar na miséria do mundo. Mas a memória mais forte que se leva do Peru é a beleza da geografia, a resistência da memória inca talhada nas rochas de Machupicchu e Cuzco. Impossível esquecer um passeio de trem no meio da cordilheira dos Andes, a roupagem colorida dos camponeses tocando lhamas pelas montanhas, as palhoças, os vulcões, a pedra branca que constrói toda a cidade de Arequipa. Melhor lembrar do Peru assim, apenas geograficamente. No Peru, em 1991, tive pela primeira vez o estranho sentimento de não me achar economicamente inferior num país estrangeiro. Eu era rica. Comparado com o Peru, o Brasil é um paraíso -mesmo esse Brasil neoliberal, que vai riscando do mapa os antes chamados de "excluídos", que assassina, no mesmo ano, centenas de bebês por infecção nos hospitais públicos e centenas de doentes em criminosos tratamentos de hemodiálise. Mas ainda é preferível lembrar do Peru do que da Argentina. No Peru, o povo é índio, de índole boa. A Argentina -pelo menos a de Buenos Aires- é um país arrogante, de gente racista como nunca se viu em toda a América do Sul. Contam-se nos dedos os negros que vivem lá. E todos os argentinos que eu já conheci são tão essencialmente racistas que não sabem sequer olhar para um indivíduo negro. Ignoram, como quem vê passar um cachorro. E se precisam dirigir-lhe a palavra, fazem-no com desdém e indiferença, como que por obrigação. Uma amiga que fala espanhol e viveu em Buenos Aires, me disse que, em espanhol (ou no castelhano de Buenos Aires?), a palavra "quilombo" tem significado diverso do que temos em português. Em espanhol, "quilombo" significa bagunça, baderna, confusão. Melhor lembrar do Peru -apesar do arremedo de ditador encenado, também anacronicamente, por "El Chino" ou "El Chinochet" Fujimori. E-mailmfelinto@uol.com.br Texto Anterior: Maia obtém melhor desempenho no fim Próximo Texto: Conde e Albernaz tomam posse com as menores taxas de apoio Índice |
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