São Paulo, sexta-feira, 2 de fevereiro de 1996
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USP merece uma invasão dos sem-parque

MARCELO COELHO

Da Equipe de Articulistas Q uerem fechar o acesso dos cidadãos à USP. Ou, pelos menos, "regulamentá-lo", exigindo documentos de quem entre no campus. O escândalo maior já vem ocorrendo há mais de um ano: as pessoas já não podem utilizar o campus como parque nos fins-de-semana.
Nada justifica essa medida. Segurança? Mas é só pôr mais guardas ali. Depredações? Elas ocorrem. Mas o campus da USP é um espaço público. E se, nos fins-de-semana, dezenas de milhares de pessoas usavam aquilo como se fosse um parque, essa é uma das utilidades públicas da instituição.
Tento entender melhor essa proibição revoltante.
Acho que a USP sempre lutou pela própria independência enquanto instituição. O que é louvável numa Universidade. Não se dobrar aos interesses políticos, empresariais, burocráticos a que está submetida.
Possivelmente, a proibição ao uso do campus pelos ciclistas e passantes de domingo surgiu como consequência dessa atitude. "Não somos um parque do Ibirapuera. Somos uma Universidade!" E nesse grito de independência se fortalece a identidade acadêmica do local.
Péssimo termo, esse de "acadêmica". Sempre que alguém o usa, está expressando alguma forma de antiintelectualismo. Uma "tese acadêmica" é sempre o modo pejorativo de descrever o trabalho de um pesquisador. Nada exige, por outro lado, que esse pesquisador seja um gênio.
De qualquer modo, existe a idéia de que a USP "é outra coisa", e que portanto não pode ser confundida com um parque a ser frequentado em fins-de-semana. Por que tanto rigor? Imagino o seguinte: a USP é de fato um parque, frequentado nos dias de semana por um vasto contingente de estudantes que nem sempre têm idéia clara a respeito de sua vocação. Terminar com a idéia de "parque" seria, num raciocínio perverso, fortalecer a vocação de não-parque que a USP tem.
Por medo do lazer que muitas vezes ali se localiza sob uma aparência séria, os burocratas da USP resolveram acabar com o lazer de verdade que é explicitado nos fins-de-semana.
Há mais um dado curioso. Quando resolveram situar a USP num terrenão baldio, nos anos 60, havia um projeto despolitizador em curso. Era a época das revoltas estudantis. Para o poder vigente, seria péssimo que universitários convivessem com o populacho. Foi importante isolar a universidade do tecido urbano, segregando-a num matagal às margens do rio Pinheiros.
Agora, é a burocracia universitária que se interessa pela segregação. O argumento da segurança é muito idiota. Como se não pudesse haver estupradores, trombadinhas e depredadores entre os aprovados no vestibular! E o que fazer dos museus que há no campus? A população está proibida de visitá-los nos fins-de-semana?
O que ocorre é uma apropriação indébita do espaço público. Mais uma vez, interesses corporativos -mas nem se trata de interesses: trata-se de preconceitos- consideram como propriedade sua aquilo que pertence à coletividade. Não entendo de leis, mas é o caso de uma ação popular.
Ou, quem sabe, de uma ocupação na marra. Por que não? Os sem-parque... Não que eu ache fundamental esse lazer idiotado na grama. E, como parque, a USP não tem grande beleza. Só que, como instituição, a USP não tem o direito de se fechar. Bibliotecas são patrimônio público, por exemplo. Museus. Grama. Laguinhos.
Minha proposta é contudo mais radical. Acho que o mais correto não seria reabrir a USP. O certo seria transformar o campus num parque público. E tirar a USP de lá.
Falta à USP esse mesmo contato com a população de que os burocratas querem livrá-la. Pode ser útil o silêncio para quem quer estudar. Há vida inteligente nos mosteiros. Mas não se trata disso. A inteligência cresce, normalmente, no contato social. Não conheço professor de filosofia da USP que não seja nostálgico dos tempos da rua Maria Antônia. O edifício da rua Maria Antônia é hoje um elefante branco. E está do lado de livrarias, cinemas, botecos, supermercados.
Por que não põem as faculdades da USP de volta ao centro da cidade? A USP, lá naquela Brasília da marginal, está isolada demais. Alunos e professores se encaixotam em salinhas de péssima arquitetura, e saem de lá em seus carrinhos, como se fossem foragidos da polícia.
Contaram-me de um célebre professor francês que veio para cá fazer conferências. Foi abandonado numa daquelas vias expressas da Cidade Universitária e saiu a esmo, procurando táxi. Por sorte, alguém o reconheceu. Tratava-se de Pierre Aubenque, ou de Etienne Balibar, ou de Desanti, sei lá. Ganhou uma carona e retribuiu em conversação brilhante.
A USP, dizia-me o professor carioca que me contou o caso, é muito caipira. Arrogância, timidez, não sei. Mas há um comportamento anti-social na Universidade de São Paulo que evita o contato entre alunos, professores, curiosos; falta urbanidade ali.
Mas que pretendam transformar o comportamento anti-social em comportamento antipúblico, numa privatização estamental, é inadmissível.
Tirem as faculdades do campus. A faculdade de Economia, por exemplo, poderia ser transformada num belo lago. Os barracões da Psicologia funcionariam como berçário-modelo. O prédio das Ciências Sociais seria um grande Memorial Fernando Henrique Cardoso. Os edifícios da Poli dariam belas aulas de implosão. O vazio do salão caramelo, da FAU, poderia ser usado como rinque de patinação.
O que está em curso é uma donzelice universitária. A Universidade só teria a ganhar se saísse do campus em que, hum, vegeta. E se deixasse a grama a quem pode aproveitar.
Correções
Falando de ficção científica, citei um romance de Clifford D. Simak, "Cidade", em que se narra uma viagem a Júpiter. O planeta era tão paradisíaco, eu dizia, que ninguém tinha vontade de sair de lá e anunciar aos terráqueos a boa nova. Um leitor me adverte: houve, sim, um astronauta que de Júpiter voltou à Terra. Mas não conto o que aconteceu com ele.
Gastronomia
No artigo sobre esnobismo na gastronomia, falei de um livro de receitas em versos escrito por Moacir Japiassu. Não. Quem escreveu o livro foi o irmão dele, Celso. Moacir lançou, pela editora Ática, outro livro de receitas, "Danado de Bom", sobre cozinha nordestina. Ao "consideradíssimo", que gosta de buchada de bode mas também do que escrevo, um abraço.

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