São Paulo, sábado, 3 de fevereiro de 1996
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Quem quer ser como Cary Grant?

RUBENS RICUPERO

A propósito da distância entre mito e realidade, recordei na semana passada desabafo memorável de Rita Hayworth, mas poderia ter lembrado a frase com que Cary Grant se referia ao seu mito cinematográfico de "gentleman" impecável.
Dizia ele: "Todo mundo quer ser Cary Grant. Eu também gostaria de ser Cary Grant".
Tudo isso é para comentar que a descrição de algumas economias asiáticas como capazes de aliar um rápido crescimento a uma declinante desigualdade de renda tem algo do desnecessário exagero do mito glamouroso.
Cary Grant não precisava, com efeito, ser em tudo igual à figura encarnada na tela para fazer jus ao título de legítimo "gentleman".
Como prova, aliás, a revelação feita por sua primeira mulher, a multimilionária Betty Hutton, de ter sido ele o único dos seus incontáveis maridos que não lhe tirou um centavo sequer na hora do divórcio.
Da mesma forma, a maioria dos asiáticos de sucesso apresentam desigualdade baixa porque, já no ponto de partida, gozavam de disparidade de riqueza relativamente menor graças à reforma agrária, às destruições ocasionadas pelas guerras ou o apoio maciço à educação primária universal.
Muito mais discutível é, por outro lado, a afirmação de que esses países conseguiram reduzir ainda mais a desigualdade de distribuição de renda apesar das taxas aceleradas de desenvolvimento que em geral favorecem mais a alguns do que outros e assim aumentam a concentração.
O que, ao contrário, parece cada vez mais evidente é uma verdade até agora pouco valorizada: a de que uma baixa desigualdade de riqueza constitui elemento valioso, talvez indispensável, para garantir um desenvolvimento duradouro em sem sobressaltos.
Jeffrey Sachs, em primeiro lugar e D. Rodrik mais recentemente, demonstraram que em sociedades de alta desigualdade as pressões do populismo político e do distributivismo econômico tendem a gerar inflação, instabilidade e finalmente estagnação.
Nesse tipo de sociedade baseada na injustiça é extremamente difícil, a não ser com sacrifício da democracia, construir um mínimo de consenso e coesão sociais, sem falar da confiança e da solidariedade cada vez mais realçadas por autores como Robert Putnam em termos da contribuição central que aportam ao processo do desenvolvimento.
Como se vê, portanto, uma distribuição mais equitativa da riqueza não é apenas questão de ética e justiça que só comove sonhadores, ideólogos ou religiosos.
Trata-se, na verdade, de pré-condição objetiva para um desenvolvimento perdurável e sólido, em velocidade de cruzeiro e não em espasmos de aceleração breve seguidos por longos períodos de estagnação, como na América Latina.
Neste continente, em geral e no Brasil, em particular, é preciso fazer alguma coisa para melhorar a distribuição da riqueza já e não num futuro indefinido.
Não adianta esperar que o problema desapareça por si mesmo, por uma espécie de passe de mágica, por efeito de um desenvolvimento que acabará não ocorrendo se antes não se reduzir a desigualdade.
As objeções à proposta geralmente assumem entre nós duas formas básicas: uma atitude quase visceral de não-intervencionismo em matéria social e o esforço de demonstrar que a reforma é incompatível com o crescimento econômico.
No primeiro aspecto somos os antípodas dos norte-americanos.
Estes são alérgicos a qualquer interferência do Estado na economia, idealmente confiada ao mercado, mas estão sempre prontos a usar o poder do governo a fim de promover a reforma social sob a forma da integração racial, da redução da pobreza nas grandes cidades ou na imposição da reforma agrária nos países asiáticos ocupados.
Nós, ao contrário, estamos dispostos a aceitar os tipos mais brutais de intervenção estatal na economia, como o congelamento da poupança, mas recuamos com sagrado horror diante de qualquer ação do governo para tentar romper o círculo vicioso da iniquidade social e racial.
Infelizmente o problema não se resolverá sem boa dose de ativismo. Melhor faríamos, portanto, se transferíssemos nosso intervencionismo do plano econômico para o da mudança social.
Essa mudança não está condicionada à conclusão do programa de estabilização monetária e tem de começar pelas ações dirigidas a melhorar o perfil da distribuição da riqueza.
Para isso, não precisamos de empréstimos do Banco Mundial nem de investimentos das transnacionais. Basta o que nos faltou na Constituinte e na revisão constitucional: vontade política para mudar.
Mudar primeiro a estrutura agrária, questão que está sendo forçada de volta à agenda pelas invasões, por não se ter querido encaminhá-la pelo processo político normal.
É dívida antiga cujo resgate já era reclamado por Joaquim Nabuco, que a considerava complemento indispensável da abolição da escravatura.
Outra medida que ajudaria a desconcentrar a riqueza seria um efetivo imposto de sucessão ou herança, aplicado de longa data nos mais conservadores dos países capitalistas europeus.
No Brasil não se conseguiu ter nem o imposto de sucessão, nem a possível alternativa, o imposto patrimonial sobre o qual se arrasta no Congresso o projeto do então senador Fernando Henrique Cardoso.
Ainda nesse domínio fiscal, pouco se fez para cobrar com vigor um imposto territorial rural progressivo que desestimulasse o latifúndio absenteísta.
A privatização poderia converter-se também num instrumento para reduzir a desigualdade se fosse concebida de forma adequada.
Na República Tcheca, por exemplo, partiu-se da convicção de que as empresas públicas pertencem ao povo cujo trabalho e sacrifício as construíram e não apenas ao Estado, que se limitou a administrá-las de maneira em geral desastrada.
Os cidadãos receberam, assim, cupões que lhes permitiram participar do processo de privatização. Entre nós um projeto similar e pioneiro do deputado Roberto Campos jamais foi levado a sério.
Não faltam, portanto, idéias das quais estas constituem apenas uma amostragem. Nem se pode pretender que tais iniciativas viessem a acarretar qualquer tipo de problema para o Plano Real, que até poderia fazer bom uso da receita fiscal adicional produzida por algumas delas.
O que nos faz falta, repito, é vontade para mudar e lucidez para desmascarar aqueles para os quais o momento de reformar a sociedade sem perigo para a economia é constantemente empurrado para um futuro indefinido.
São dignos sucessores do Visconde de Muritiba, que, ao responder no Conselho de Estado em 1867 à consulta do imperador sobre a data em que a economia poderia prescindir da escravidão, sugeria o ano longínquo de 1930, quando os escravos sobreviventes seriam remidos pela metade do preço.

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