São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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Da utilidade da poesia

AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Qual é a utilidade de seus 'assim chamados' versos?" Esta pergunta sintomaticamente acintosa é repetidamente formulada pelo juiz no processo de Leningrado de fevereiro de 64 em que Josef Brodski, então com 24 anos de idade, era acusado de "parasitismo social". As respostas com que o poeta tentou se defender na ocasião (com êxito escasso, visto ter ficado preso por quase um ano e depois ter-se exilado em 1972, nos EUA) e que haveriam de tornar-se pressupostos teóricos de sua obra, foram reelaboradas mais de 20 anos mais tarde, vindo a constituir uma síntese de interessantes reflexões sobre a arte, na coletânea de ensaios "Menos que Um" (veja-se a tradução brasileira da Companhia das Letras em 1994) e no discurso de aceitação do Prêmio Nobel de 1987.
Uma vez que o significado privilegiado da existência humana é, no entender do poeta, a aquisição de um rosto não comum, (a especifização da vida de cada um) e sendo a diversidade humana justamente a razão de ser da literatura, que estimula o sentido da unicidade do homem e o transforma de animal social em eu autônomo, decorre que a estética é a mãe da ética, ou seja, em sentido antropológico: antes de ser uma criatura ética, o ser humano é uma criatura estética. E ainda, mais especificamente, se aquilo que nos diferencia dos outros animais é a palavra e sendo o poeta o instrumento de que se serve a língua para existir e renovar-se, a poesia -enquanto realização suprema da palavra- é a meta de nossa espécie. Se o lirismo é quem faz sobreviver uma obra de arte, o lirismo é a ética da linguagem.
Uma arte como a música, por outro lado, pode admitir um ouvinte passivo ou outro, que a interprete, enquanto que a poesia, sendo "desesperadamente semântica" (Cf. Montale, citado por Brodski), admite tão somente este último. Com isso dá-se uma equiparação entre a consciência do autor e a do fruidor, fato que, mais cedo ou mais tarde -no dizer de Brodski- acaba condicionando a conduta do indivíduo.
Quanto mais rica for a experiência estética, tanto mais segura será a escolha moral e tanto mais livre o homem. Daí o famoso dito de Dostoiévski de que a beleza salvará o mundo. A arte anima a realidade e corre paralela à história. Os poetas dizem a história por meio de sua linguagem progressiva. A literatura é o antídoto que temos contra a lei da jângal: uma existência que ignora os critérios propostos pela literatura é uma vida inferior.
Recorremos à poesia por razões inconscientemente miméticas. Por utilizar o modo analítico de cognição, mas orientar-se principalmente para os modos da intuição e da revelação, o exercício poético é um acelerador de consciência. Enfim, literalmente: "A sociedade, maioria por definição, presume ter outras opções que não sejam as de ler versos, por mais bem escritos. Ao deixar de ler versos, entretanto, arrisca-se a cair naquele nível de elóquio em que uma sociedade é presa fácil de demagogos e tiranos".
Como vê Nelson Ascher nos artigos escritos em diferentes ocasiões, que acompanham as sete traduções de poemas, esse ideário estético tem uma contrapartida ideológica (com a qual pode-se concordar ou menos). Da mesma forma as cenas traumáticas que marcaram a biografia do autor redundaram possivelmente em "respostas" ora contraditórias, ora demasiado generalizantes, ora, ao contrário, extremamente idiossincráticas. (Não admira o post-scriptum de Boris Schnaiderman no livro, ao ler na entrevista mal-humorada concedida pelo autor, que os poetas Pasternak, Maiakóvski e Khlébnikov seriam figuras "menores"!).
Mas o que importa, para a literatura, no caso, é a qualidade de seus poemas, extremamente bem "interpretados" pelos tradutores, na mais fiel das aproximações.
A obra poética não somente sustenta a teorização do autor, mas, para usar um termo que ele haveria de repudiar de imediato, a torna dialética.
Quanto a "Quase Uma Elegia", um último reparo. Teria sido bastante proveitoso, visto tratar-se de um trabalho de poética comparada, colocar-se ao lado dos imprescindíveis textos no original, também a versão em língua inglesa realizada pelo autor. Ela fica a dever muito à tradução em português.

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