São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996 |
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Da utilidade da poesia
AURORA F. BERNARDINI
Uma vez que o significado privilegiado da existência humana é, no entender do poeta, a aquisição de um rosto não comum, (a especifização da vida de cada um) e sendo a diversidade humana justamente a razão de ser da literatura, que estimula o sentido da unicidade do homem e o transforma de animal social em eu autônomo, decorre que a estética é a mãe da ética, ou seja, em sentido antropológico: antes de ser uma criatura ética, o ser humano é uma criatura estética. E ainda, mais especificamente, se aquilo que nos diferencia dos outros animais é a palavra e sendo o poeta o instrumento de que se serve a língua para existir e renovar-se, a poesia -enquanto realização suprema da palavra- é a meta de nossa espécie. Se o lirismo é quem faz sobreviver uma obra de arte, o lirismo é a ética da linguagem. Uma arte como a música, por outro lado, pode admitir um ouvinte passivo ou outro, que a interprete, enquanto que a poesia, sendo "desesperadamente semântica" (Cf. Montale, citado por Brodski), admite tão somente este último. Com isso dá-se uma equiparação entre a consciência do autor e a do fruidor, fato que, mais cedo ou mais tarde -no dizer de Brodski- acaba condicionando a conduta do indivíduo. Quanto mais rica for a experiência estética, tanto mais segura será a escolha moral e tanto mais livre o homem. Daí o famoso dito de Dostoiévski de que a beleza salvará o mundo. A arte anima a realidade e corre paralela à história. Os poetas dizem a história por meio de sua linguagem progressiva. A literatura é o antídoto que temos contra a lei da jângal: uma existência que ignora os critérios propostos pela literatura é uma vida inferior. Recorremos à poesia por razões inconscientemente miméticas. Por utilizar o modo analítico de cognição, mas orientar-se principalmente para os modos da intuição e da revelação, o exercício poético é um acelerador de consciência. Enfim, literalmente: "A sociedade, maioria por definição, presume ter outras opções que não sejam as de ler versos, por mais bem escritos. Ao deixar de ler versos, entretanto, arrisca-se a cair naquele nível de elóquio em que uma sociedade é presa fácil de demagogos e tiranos". Como vê Nelson Ascher nos artigos escritos em diferentes ocasiões, que acompanham as sete traduções de poemas, esse ideário estético tem uma contrapartida ideológica (com a qual pode-se concordar ou menos). Da mesma forma as cenas traumáticas que marcaram a biografia do autor redundaram possivelmente em "respostas" ora contraditórias, ora demasiado generalizantes, ora, ao contrário, extremamente idiossincráticas. (Não admira o post-scriptum de Boris Schnaiderman no livro, ao ler na entrevista mal-humorada concedida pelo autor, que os poetas Pasternak, Maiakóvski e Khlébnikov seriam figuras "menores"!). Mas o que importa, para a literatura, no caso, é a qualidade de seus poemas, extremamente bem "interpretados" pelos tradutores, na mais fiel das aproximações. A obra poética não somente sustenta a teorização do autor, mas, para usar um termo que ele haveria de repudiar de imediato, a torna dialética. Quanto a "Quase Uma Elegia", um último reparo. Teria sido bastante proveitoso, visto tratar-se de um trabalho de poética comparada, colocar-se ao lado dos imprescindíveis textos no original, também a versão em língua inglesa realizada pelo autor. Ela fica a dever muito à tradução em português. Texto Anterior: MAUPASSANT; HISTÓRIA; PRÊMIO; LANÇAMENTO Próximo Texto: Poeta morreu há 1 semana Índice |
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