São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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Uma história de equívocos

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Depois de ler um livro como "Guerra do Paraguai: 130 Anos Depois", fica-se com a impressão de que os maiores derrotados nesse esquecido conflito foram os historiadores acadêmicos brasileiros. Os mais importantes textos do livro foram escritos por um professor britânico, e um dos mais polêmicos, embora equivocado, é obra de um peruano que se baseou no trabalho de um nicaraguense.
Com saudáveis exceções, os historiadores brasileiros engoliram, muitas vezes por conveniência ideológica, uma curiosa patranha: o mito de que a Guerra do Paraguai foi causada, ou no mínimo instigada, pela Grã-Bretanha, e de que o imperialismo britânico foi o único beneficiado pelo conflito.
O principal motivo é uma piada. A maior potência do planeta estaria muito preocupada com o "modelo autônomo" de desenvolvimento exibido pelos paraguaios, uma espécie de capitalismo de Estado que seria uma ameaça ao livre comércio ao gosto britânico.
É interessante como essa interpretação lembra as palavras de ordem da esquerda da década de 60 contra o imperialismo norte-americanos, pois o intervencionismo ianque na América Latina era visto como uma maneira de brecar um "modelo autônomo", socialista ou nacional-burguês. Um Paraguai moderno seria, por exemplo, a Nicarágua sandinista. E qualquer semelhança com os xingamentos atuais ao neoliberalismo não é mera coincidência.
Não foi à toa que o trabalho que mais fez força para encaixar a patranha na camisa de força da verdade histórica foi escrito por um nicaraguense em 1979, a tese de doutorado (defendida nos EUA) de José Alfredo Fornos Peñalba, "O Quarto Aliado: Grã-Bretanha e a Guerra da Tríplice Aliança".
O peruano Enrique Amayo defende ardorosamente essa visão do mundo, e a amplia para a Guerra do Pacífico, na qual, para ele, o Chile derrotou Bolívia e Peru com ajuda britânica (convém deixar a resposta disso aos chilenos).
Leslie Bethell, professor emérito de história da América Latina da Universidade de Londres, pacientemente mostra que a patranha da guerra movido pelo imperialismo britânico não faz sentido. "Há pouca, senão nenhuma evidência empírica capaz de sustentá-la -pelo menos de acordo com a análise mais recente e detalhada das relações da Inglaterra com o Paraguai no século 19, com base em fontes oficiais britânicas", diz Bethell.
Mais triste ainda é a falta de bons livros sobre o tema. "A Guerra do Paraguai aguarda o seu historiador da era moderna", sintetizou Bethell.
Os historiadores recentes brasileiros pouco fizeram além de repetir a patranha. Temas importantes, como o papel da Guerra na própria formação da sociedade brasileira, foram negligenciados. Falta saber quase tudo sobre esse que foi o maior conflito externo em que brasileiros se envolveram.
Uma exceção recente foi o livro de Ricardo Salles, "Guerra do Paraguai: Escravidão e Cidadania na Formação do Exército", de 1990. Na mesma linha está um dos artigos deste livro, "O Príncipe Obá, um Voluntário da Pátria", de Eduardo Silva.
Trabalhos como estes mostram que o Exército brasileiro criado pela Guerra não era um mero grupamento de escravos levados à força para a luta, chefiados por uns poucos oficiais brancos. O uso de negros ex-escravos em combate é bem mais complexo do que pode parecer. Houve muitos negros voluntários e muitos negros heróis nesse Exército. Zumbi -ao contrário do que pode parecer, depois das comemorações no ano passado dos 300 anos de sua morte-, não foi o único guerreiro e herói negro na história deste país.

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