São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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A pequenina grande Harriet

Biografia faz justiça à autora de "A Cabana do Pai Tomás"

E.L. DOCTOROW
ESPECIAL PARA O "NYT BOOK REVIEW"

Harriet Beecher Stowe nasceu em 1811, sétima filha do fervoroso pregador Lyman Beecher e de Roxana Foote, neta de um dos generais de Washington. Tendo escrito um livro de geografia para crianças com sua irmã Catharine, publicado em 1833, Harriet foi convidada a entrar nos Semi-Colons, um grupo de homens e mulheres que se encontravam todas as segundas para leituras, discussões e bebidas. Para estas ocasiões, Harriet escrevia esquetes e histórias que lia em voz alta, e sobre as quais era elogiada, aconselhada e criticada.
O Semi-Colon Club aproximou Harriet Beecher e Calvin Ellis Stowe, um empobrecido mas respeitado estudioso da Bíblia e linguista, viúvo, cuja mulher fora amiga de Harriet e morrera vítima de uma epidemia de cólera.
Harriet casou-se com Calvin em janeiro de 1836. Começou a escrever histórias para revistas para completar o orçamento e com seus ganhos pagou empregadas, negras e brancas, para ter mais tempo para escrever.
Calvin Stowe acreditava num casamento de companheirismo entre iguais, mas sabia ser exigente, emocionalmente explosivo e crítico quanto à sua mulher como dona-de-casa. Os Stowe, mais ou menos de comum acordo, praticavam o controle de natalidade por meio da abstinência, ambos fazendo viagens sozinhos por meses seguidos. O casamento deles era afetuoso, embora difícil; as dificuldades, porém, seriam aplainadas pela celebridade de Harriet como autora de "A Cabana do Pai Tomás".
O ultraje histórico imediato que motivou a grande obra de sua vida foi a Lei dos Escravos Fugitivos, aprovada pelo Congresso em 1850, que efetivamente suspendia os direitos de habeas corpus e julgamento por um júri e punia com sentenças de prisão e multas qualquer um que desse abrigo ou assistência a um escravo fugido.
Harriet tinha se envolvido na causa abolicionista 15 anos antes, quando os alunos de seu pai condenaram publicamente a escravidão e uma multidão de escravagistas destruíra as impressoras de um jornal abolicionista local.
Ela havia escrito uma carta ao editor do "The Cincinatti Journal", usando um pseudônimo masculino, em que defendia o abolicionismo baseando-se na Primeira Emenda. Agora, no entanto, o imperativo moral que a assaltava era mais intenso. Concebeu uma série de histórias interligadas que dariam um panorama da escravidão e acertou sua publicação na revista "The National Era".
Os episódios foram publicados semanalmente, de junho de 1851 a abril de 1852. Editado em livro em março de 1852, logo antes do último episódio, "A Cabana do Pai Tomás" vendeu 10 mil exemplares em uma semana e 300 mil ao fim de um ano. Na Inglaterra, onde não havia escravidão, foi ainda mais bem-sucedido. Seria traduzido para mais de 40 línguas, e se tornaria o segundo livro mais popular do mundo, depois da Bíblia.
Um dos aspectos mais impressionantes da biografia "Harriet Beecher Stowe - A Life", escrita por Joan D. Hedrick, é sua convincente análise de "A Cabana do Pai Tomás". A fonte de sua voz narrativa, sua moldura doméstica, seu uso do dialeto e seu "impulso de instruir", ela encontra nas produções anteriores de Stowe, de literatura de salão, o único estilo praticável para uma mulher de uma geração ensinada a confinar sua expressão ao lar.
Sua visão de mundo cristocêntrica era quase inevitável para uma filha, irmã e mulher de clérigos e uma crente chocada pelas racionalizações hipócritas de cristãos escravagistas. Hedrick, que é também autora de uma biografia de Jack London, não faz uma defesa selvagem de "A Cabana do Pai Tomás" em termos literários.
Ela concorda com críticos que apontaram a apropriação que Stowe faz de narrativas de escravos, sem citar suas fontes, e enfatiza o racismo paternalista de seus estereótipos. Mas ela compara a história da fuga de Eliza à aceitação passiva da escravidão de Pai Tomás, afirmando que o livro incorpora uma "narrativa de liberdade", além da narrativa de submissão. E, num contexto mais amplo, ela constrói o argumento de uma historiadora literária, em que todas as contradições morais do livro são um espelho dos conflitos da nação americana.
Ela explora muito a resistência a Stowe por parte dos escritores de Nova York e Boston do sexo masculino -todo mundo, de Hawthorne a James-, que se empenhavam em excluir escritoras populares de qualquer consideração literária séria. É iluminador, para não dizer instrutivo, ver na prosa distanciada e imaculada de Hendricks como nossos ícones da literatura trabalharam duro para colocar a si mesmos, e somente a eles, no cânone literário americano. Quaisquer que sejam os méritos ou fraquezas da ficção de Stowe, ela foi, juntamente com outras escritoras de seu tempo, vítima de um movimento deliberado e bem-sucedido para dividir a cultura americana em elevada e baixa.
Acho que é provável que Stowe acreditasse na música da escrita (ela escreveu em uma carta a George Eliot: "Você já pensou no poder rítmico da prosa, como cada escritor, quando se aquece, cai num certo balanço e ritmo peculiar a ele, as palavras todas tendo seu lugar e as frases sua cadência?") e se sentisse desconfortável com a dicção política pré-fabricada que acompanha qualquer ativismo.
A biografia escrita por Hendricks é clássica -envolvente, documentada, definitiva e nunca se afasta demais de suas fontes. É judiciosamente feminista em sua sensibilidade e continuamente reveladora. Depois disso, gostaria de uma nova edição das cartas de Stowe, pois é nelas que seu gênio é mais aparente.
Abraham Lincoln conheceu Harriet Beecher Stowe em 1862 e disse: "Então você é a mulher pequenina que escreveu o livro que começou esta grande guerra!".
Pequenina ela era, mas uma verdadeira usina de intelecto evangélico, que conseguiu desenhar ao longo de sua vida todas as grandes batalhas morais e culturais de seu século.

O QUE LER
"A Cabana do Pai Tomás" tem traduções no Brasil pelas editoras Ediouro e Paulinas. Fonte: CBP (Catálogo Brasileiro de Publicações) e Livraria Nobel. A biografia "Harriet Beecher Stowe - a Life", de Joan D. Hendrick (Oxford University Press) pode ser encomendada à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4933, São Paulo)

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