São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Abutres da alma

RICARDO SEITENFUS

"Os grandes homens têm a terra inteira como tumba"
Tucídides, "História da guerra do Peloponeso", século 5 a.C.

As qualidades, limitações, dramas e a trajetória política fizeram de François Mitterrand alvo de dezenas de livros e artigos. Autores saíram das sombras para ser iluminados pela figura do presidente. Outros julgaram que o seu ocaso propiciava um acerto de contas. Sob o escudo de servir à pequena história, desnudaram sua privacidade, traindo confiança e demonstrando oportunismo.
Infelizmente a notícia da morte, antes mesmo que se fizesse um balanço do legado de Mitterrand ao mundo, foi associada a um livro de denúncia, escrito por um de seus antigos médicos. Sempre desconfiei de quem aguarda a morte de seus personagens para tornar-se escritor. A obra teve a circulação proibida pela justiça francesa, mas foi fartamente veiculada por meio da Internet.
O mais assistido telejornal do Brasil, em horário nobre, atento à lei positivada e bastante desprendido da justiça e da ética, fez questão de divulgar pausadamente o endereço eletrônico que possibilita seja burlada a decisão judicial. Faria um melhor serviço se procurasse informar corretamente seus ouvintes sobre o significado da vida e da morte da vítima.
Ao panteão da história, junto a outras personalidades políticas que marcaram o século 20, ascende Mitterrand. Apesar de considerar-se como alguém "que faz parte da paisagem francesa, que nasceu dela", o estadista deve ser lembrado pela sua atuação internacional.
A questão alemã é essencial. Poucos dirigentes europeus estavam a tal ponto convencidos da imperiosa necessidade de construir entendimento franco-germânico. Tratava-se de impedir nova guerra e propiciar condições para o desenvolvimento econômico nacional, mas sobretudo da única via para a Europa, cuja marginalização era ainda mais sentida. Até há pouco considerava-se o centro do mundo.
A Guerra Fria estreita ainda mais a margem de manobra da Europa ocidental, colocando-a objetivamente entre a bigorna e o martelo. Nessas condições, ao suceder Giscard d'Estaing em 1981, Mitterrand impulsionou o núcleo central da construção européia e incentivou, juntamente com o chanceler Helmut Kohl, o aprofundamento da integração. Essa é, sem dúvida, a principal característica da ação externa dos 14 anos de mandato de Mitterrand.
Todavia, para esse refinado intelectual, escritor com um certo talento, conhecedor da dimensão temporal e filosófica da atividade política, não bastava tomar decisões de Estado. Era necessário qualificá-las e torná-las inteligíveis a longo prazo, além da dimensão estreita do horizonte nacional. Mesmo sob incompreensão e a crítica dos contemporâneos. Nessas ocasiões o político cedia a cena ao humanista.
Quando comemora-se o cinquentenário da vitória dos Aliados, o homem que foi à guerra e pertence a uma geração criada nos belicosos laboratórios de imagens e de valores que marcaram quase todo o século vai à Berlim e declara: "Não vim aqui celebrar a vitória que me alegra para o meu país; tampouco vim para sublinhar a derrota, porque eu sei o que havia de forte no povo alemão, suas virtudes, sua coragem. E pouco me importa seu uniforme e a idéia que abrigava o espírito de seus soldados que iriam morrer em tão grande número para uma causa má. Eles amavam sua pátria. Nós também amamos nossas pátrias e construímos a Europa. Então, permanecendo fiéis à nós mesmos, vamos unir o passado ao futuro, e assim nós poderemos transferir, com o espírito em paz, o bastão àqueles que vão nos seguir". Despede-se como pacifista.
Enfermo desde o início da década de 80, o ocaso político coincide com a vitória da doença. O orgulhoso Mitterrand tenta fazer com que essa dupla derrota seja acompanhada pela simbologia que orientou sua carreira. Em 50 anos de vida pública, participou de mais de mil reuniões do Conselho de Ministros.
Na última que preside, em maio de 1995, Mitterrand esforça-se para transmitir que a vida está acima da política. Ciente de que, poucas horas depois, o local será ocupado por seus rivais, manifesta fina ironia: "Olhem que lindo dia. Existem outras coisas: as flores da vida, a esperança".
Aos seus assessores mais próximos ele confidenciava sobre os adversários: "A melancolia estava mais com eles do que comigo". Concilia elegância e respeito à derrota. Marcante contraste com certos políticos nacionais, que deixam palácios pela porta dos fundos e, rancorosos, fecham-se como caracóis.
A preocupação com a marca que deixará na história leva Mitterrand a grandes realizações, que confirmaram Paris como a metrópole mais atraente do mundo. Grande admirador da civilização egípcia, ele aproxima-se, metaforicamente, da imortalidade. Despediu-se da vida com uma viagem a Assuã, mas a doença o impediu de admirá-la pela última vez.
A parte progressista e democrática da América Latina, ao olhar para a Europa, sempre viu na França, nos socialistas e em especial em Mitterrand uma interlocução indispensável. A onda militarista que nos golpeou por décadas levou milhares de refugiados à França.
Com a redemocratização e o retorno dos civis ao poder local, a França socialista continuou a ser uma referência para nosso continente. Compreendendo isso Mitterrand busca na universidade o professor Alain Rouquié, o mais sério e competente latino-americanista francês, e entrega a ele as relações da França com o Novo Mundo.
Com o desaparecimento de Mitterrand, o retorno de uma direita nacionalista ao poder na França e a chamada onda neoliberalizante, que afeta tanto a eles quanto a nós, notamos que chegaram novos tempos, carregados de velhos e frustrantes valores.
Uma frustração que se parece com a desesperança que nos assaltou ao ver pelos satélites, frio e inerte, o homem François Mitterrand. Estimo que a história saiba percebê-lo por inteiro, em suas luzes e sombras.

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS, 47, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, é professor titular de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e co-autor de "Uma História Diplomática do Brasil" (Ed. Civilização Brasileira) entre outros livros.

Texto Anterior: O princípio da moralidade pública
Próximo Texto: Colômbia; Unicamp; Liderança; Comparações; Falta de repercussão; Motivo principal
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.