São Paulo, terça-feira, 6 de fevereiro de 1996
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LUÍS PAULO ROSENBERG

Poucos se dão conta de que o Brasil tenta um feito inédito na história das economias que tiveram altas taxas de inflação: trazê-las de volta a níveis civilizados, depois de conviver por quase meio século com um processo continuamente ascendente, mas sem ter passado pela hiperinflação.
De fato, a literatura é farta em nações que se mobilizaram, com êxito, para liquidar a inflação, tão logo ela ensaiava aproximar-se de 10%, 20% anuais (para não falar de Alemanha e Japão, que entram em pânico quando a taxa anual chega a 3%).
Há também vários casos de países levianos como o nosso, que deixaram o processo escapar de controle, foram à hiperinflação e, desde então, vivem mobilizados contra seu retorno. Bolívia, Peru e Argentina são os melhores exemplos recentes, nesta categoria.
Pois até o Real, o Brasil ocupava uma singular coluna do meio, onde as elites política e econômica jamais mobilizaram-se para enfrentar o mal, mas foram criativas o suficiente para desenvolver um ardiloso sistema de indexação, que nos permitia continuar operando a economia com razoável eficiência, porém, provocando a mais cruel distribuição de renda dentre os países industrializados.
Por que exterminar a inflação, numa economia que a ela se adaptara, seria tarefa tão mais difícil? Não por oposição do povão, que desde o Cruzado deixara bem claro sua gratidão por quem o livrasse do confisco salarial, imposto pela inflação ascendente.
Sabia-se, sim, que os segmentos prejudicados pelo programa de estabilização mobilizar-se-iam, agressivamente, para recuperar seus privilégios; por outro lado, os defensores da estabilidade, não tendo a lembrança do sofrimento imposto pela hiperinflação, para usar como bandeira de defesa do programa, seriam progressivamente devorados pelos interesses contrariados.
Basta folhear os jornais para partilharmos desta suspeita de que somos mesmo incuráveis. O ex-ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, quando criou o Real, foi o primeiro a enfatizar que o Plano apenas lançava o processo de estabilização dos preços.
Ou se avançava na direção do corte dos gastos sob responsabilidade pública, da redução dos encargos sobre empresas e trabalhador e de uma privatização valente, ou o Plano Real iria para o espaço.
Passados dois anos, todos dão como fato que a inflação acabou no país, para deleite das massas, que apóiam o presidente calorosamente. E quem se sensibiliza com sacrifícios exigidos pela consolidação do plano, que já é vitorioso? Agora, lideranças se voltam para o lado real da economia, já que o nominal estaria domesticado.
Neste instante de alienação coletiva, a importância da estabilidade é defendida apenas pela voz cada vez mais abafada do Banco Central, enquanto os vícios do passado vão ganhando espaço. O destaque, certamente, fica com o crescimento espetacular, descontrolado e nem sequer previsto do setor público, veneno na veia do Plano Real.
O processo de abertura da economia -peça-chave a forçar nosso empresariado a pular miudinho- vai sendo corroído pela falta de convicção do Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo, com suas imposições diárias de restrições às importações.
Não passa uma semana sem que venha um líder dos exportadores, um intelectual de esquerda ou um jornalista desavisado exigir uma maxidesvalorização, sem lembrar que as exportações estão batendo recordes e o Plano Real acaba no dia seguinte em que se reindexar o câmbio.
A CUT, baluarte natural da estabilidade redentora dos descamisados, abraça a causa da aposentadoria especial dos professores universitários, mas impede a privatização da Previdência Social.
E por falar em privatização, a mina de ouro descoberta pela Vale do Rio Doce passa a ser pretexto para cancelar sua privatização.
Enquanto isso, o beicinho de Mário Covas força o governo federal a financiar a manutenção do Banespa nas mãos do mesmo Estado que quase quebrou o Banco Central nos últimos governos.
Aberto o precedente, cada Estado, agora, acha-se também no direito de recorrer ao gênio da lâmpada, na Presidência, e cobrar seu desejo. ACM ganhou a reabertura do Banco Econômico; Pernambuco, a do Mercantil. A bancada gaúcha já reivindica que o Meridional não seja mais privatizado.
Em suma, não só não avançam as reformas, mas estamos fazendo ao contrário do que necessita o programa de estabilização para consolidar-se. Pelo Real, vamos cair na real. Voltemos aos ensinamentos e propostas do lançamento do Plano Real, escritas por seus pais, que, desde então, desiludidos, abandonaram o barco.
Vamos assumir que estabilizar a economia não é piquenique, mas tarefa de titãs, irmanados no compromisso de dar, às baixas rendas, o melhor programa social que existe: a preservação do poder aquisitivo de suas moedas.
Ou então, preparemo-nos para a dolorosa comprovação do teorema de que, em matéria de inflação, dos 50% mensais para os 5% anuais, só se chega passando pelo inferno dos 5.000% semanais.

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