São Paulo, sexta-feira, 9 de fevereiro de 1996
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Chegou a hora de gritar 'Bafana Bafana!'

BRUNO ROBERTO PADOVANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acabo de desligar a televisão: a África do Sul é a campeã de futebol da África, 2 a 0 sobre a Tunísia. Um resultado que, para o brasileiro, acostumado com os triunfos mundiais da "seleção canarinho", provavelmente despertará apenas interesse fugaz, uma curiosidade efêmera.
Para mim, no entanto, o jogo foi palco de fortes emoções. Preciso explicar: nascido na Itália, passei minha adolescência na África do Sul, na década de 60, quando o famigerado "apartheid" castigava e segregava uma população das mais ricas, étnica e culturalmente, do planeta.
Mesmo pertencendo, como europeu, à classe privilegiada pelo sistema político em vigor, senti na pele a discriminação contra os latinos, que eram considerados brancos de segunda classe pela maioria dos sul-africanos de origem britânica.
Na escola, só para brancos e só para meninos (o "apartheid", como seria de esperar, era também sexual), não se podia jogar futebol, que, como todo bom italianinho, adorava. Só rúgbi, críquete, hóquei na grama e esportes do gênero.
Nos intervalos, porém, puxava-se uma bola de tênis do bolso e, com a cumplicidade de outros "marginalizados" (judeus, outros latinos ou um eventual grego), inventava-se uma bela e animada pelada, na barba dos racistas...
O regime mal tolerava o futebol, esporte dos "niggers" e das "menininhas". A imprensa local só tinha olhos para os heróis loiros da seleção de rúgbi e de outros esportes queridos aos descendentes dos anglo-saxões e bôeres.
No entanto, nas "townships", guetos para negros ao redor das ricas cidades dos brancos, torcidas fanáticas e maltrapilhas erguiam os punhos no ar para celebrar gols de anônimos jogadores de futebol.
Hoje, 30 anos depois, um homem de meia idade chora ao ver o loiro e branco jogador Tinkler abraçando e beijando Mark Williams -que, apesar do nome, é filho legítimo da Mãe África-, que, com o talento que Deus deu aos homens de cor, liquidou o jogo em dois minutos. Este homem chora ainda como o menino que, humilhado, tinha que esconder a bola de tênis no final do recreio.
Depois, à medida que os bravos guerreiros dourados da seleção sul-africana impõem sua superioridade no jogo, suas lágrimas se tornam risadas.
Ri, então, com as imagens de um país que luta, mais do que nunca, no seio de uma realidade africana cheia de problemas. E vibra, como o Brasil vibrou em outras finais, ao ver um time repleto de cores diferentes, representante legítimo de um povo multicromático.
E vibra com a serena autoconfiança daquele grande líder e ser humano, Nelson Mandela, o príncipe do estádio eufórico tanto quanto da reintegração sul-africana.
E nos gritos e milhares de cartazes com os dizeres "Bafana Bafana!", nome popular da seleção sul-africana, o homem de meia-idade enxerga um novo mundo, integrado, justo e plurirracial, que se ergue por sobre as ruínas do velho.

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