São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 1996 |
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Um "deus" vai à terra da negritude
MARILENE FELINTO
São todos cães fiéis dedicados a proteger incondicionalmente o astro maior da pele escura: nem Spike Lee falou, nem seu produtor Butch Robinson sabia dizer, nem Billy Arquimino, do grupo Olodum, podia afirmar nada sobre os destinos de Jackson no país. Sobrepunha-se o mito ao mito: Michael Jackson já não era humano, era um deus que viria das nuvens matinais; ou um príncipe encantado que chegaria à meia-noite na sua carruagem-jato particular. Aos mortais, só restava esperar. Firmava-se aqui e ali certo sentimento de revanche histórica -involuntário, é bem verdade- da negritude contra o velho poder branco, representado, nesse episódio, pela imprensa. Salvador vive uma festa negra. O cumprimento oficial é o "brother" americano ou o "irmão" baiano. A equipe de Lee -esmagadoramente negra e masculina- tem preferência ostensiva por mulheres mulatas e negras. Branco fica em segundo plano -mas isso não é novidade na Bahia, onde negro dá como coqueiro, como dendê, coisa natural da terra. Na verdade, a Bahia nem se altera tanto com a presença de Jackson. Ora, a Bahia só se assiste a si mesma, em seu narcisismo primário, autêntico. Os ídolos locais estão momentaneamente ofuscados, mas não saem de sua toca, fazem de conta que nada está acontecendo (Caetano, Gil, Amado). A novidade está no pacto silencioso. É como se depois de mais de um século de adiamento, desembarcassem no porto de Salvador escravos afro-americanos, vindos de suas senzalas, das plantações de algodão do sul dos Estados Unidos, para a grande festa de confraternização com seus irmãos afro-brasileiros. Um recuo fictício na história dá idéia disso: vieram os afro-americanos trocar banzos e gospels com os afro-brasileiros das plantações de cana-de-açúcar da Bahia, no festivo reencontro, ao som de muitos tambores, de irmãos separados pela diáspora negra. Salvador hoje é exemplo de que já se foi a época em que líderes negros eram assassinados como bananas podres nas ruas dos Estados Unidos (Luther King, Malcolm X). Agora os líderes são outros, poderosos como Farrahkan. Ou melhor ainda: são artistas e ganham o mundo como Spike Lee e Michael Jackson. Este último, com poderes de deus e do dinheiro, parece proclamar, alto e bom som ao mundo: eu posso ser o que eu quiser, inclusive branco. Texto Anterior: Cantor chega com máscara e uniforme de futebol Próximo Texto: Um "deus" vai à terra da negritude Índice |
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