São Paulo, terça-feira, 13 de fevereiro de 1996
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Apenas um pesadelo

LUÍS PAULO ROSENBERG

Inflação mensal abaixo de 1% durante 96, opinião pública maciçamente suportando o presidente, Vicentinho juntando-se aos homens de boa vontade, exportações de janeiro batendo recorde para o mês.
Com um cenário tão favorável, como explicar meu pesadelo de ontem?
Acordei assustado, como ex-fumante, que, recorrentemente, sonha ter voltado a fumar e desperta transtornado por ter jogado fora tantos anos de sacrifícios. Assim me sentia em relação ao Real.
De repente, voltou-me aquela sensação de insegurança que produz inflação mensal de 20% a caminho de 50%, apesar das garantias do tonto de plantão na Fazenda, que nos tenta tranquilizar dizendo que está tudo sob controle.
Feito o esforço de reconstituição do pesadelo, que narro a seguir, dei-me conta de quantos absurdos seriam necessários para matar o plano de estabilização e relaxei.
Afinal, ter um governo inteligente deve ser garantia suficiente de que a lógica prevalecerá sobre as ameaças ao Real.
Tudo começava na votação da reforma previdenciária. Não se conseguira nada da mudança radical de que o Brasil necessitava nessa área.
Realmente, o projeto aprovado, depois que até o líder do movimento "Aposentadoria Precoce para Camelôs" também emplacou sua emenda, só continha um artigo relevante: a lei será revista em cinco anos, na esperança de que, até lá, tenha melhorado o nível dos deputados, dos sindicalistas, dos ministros. Ou -o mais provável- porque a Previdência terá quebrado de vez.
Dessa votação em diante, foi só ladeira abaixo. A reforma administrativa não passou, mas o imposto sobre o cheque sim, acentuando o processo de transfusão de energia do setor privado para o público.
A imaginativa solução adotada para a privatização da Companhia Vale do Rio Doce encerrou a fase de vendas de estatais, pois, devido às resistências políticas, o governo resolveu dividir antes de privatizar a Vale. Assim, privatizou o vale e manteve a Companhia do Rio Doce em suas mãos.
O Ministério da Indústria e Comércio conseguiu criar um imposto sobre o diesel, para subsidiar o álcool.
Ou seja, pressionou-se a inflação e se encareceu a produção agrícola e de frangos -que dependem de tratores e caminhões à diesel- para que o Ômega luxo fosse vendido ao pobre consumidor com um desconto que o leve a adquirir a carroça alcoólatra.
Os produtos importados ficavam mais caros dia a dia, pela elevação das alíquotas do Imposto de Importação.
Havia até sido inaugurado, na Esplanada dos Ministérios, um terminal de computador 24 horas no qual o lobista do produtor nacional de cobertores, por exemplo, que exigia proteção ao seu produto assinalava com um xis o motivo da queixa: o similar importado dava Aids, ou fora produzido por escravos, crianças ou heterossexuais ou, simplesmente, comprimia a margem de lucro de tal forma que a família do empresário não poderia mais esquiar em Aspen duas vezes ao ano.
Qualquer um desses motivos seria suficiente para triplicar, automaticamente, o Imposto de Importação sobre cobertores.
A vaca foi para o brejo mesmo quando o Orçamento de 96 foi aprovado, com um déficit nominal implícito de 10% do PIB.
O preceito constitucional de equilíbrio orçamentário fora mantido, pois um assessor da Seplan teve a brilhante idéia de superar o impasse, no dia da votação, incluindo uma previsão de arrecadação de mais de R$ 50 bilhões numa rubrica incluída na undécima hora: "Doações voluntárias de corruptos, bicheiros e traficantes arrependidos".
A receita prevista não se materializou, com exceção de R$ 1 milhão doado por empreiteiras e beneficiários do Proer, cujas contribuições foram estornadas por não se enquadrarem na letra da lei.
Na mesma semana, o salário mínimo foi elevado para R$ 150 reais ("é melhor trabalhar com números redondos", alegou o ministro-candidato, que defendeu a medida a tapas).
Aumento similar foi dado aos funcionários públicos ("é o respeito à isonomia", defendeu o ministro da CUT, com uma risadinha).
Pressionado por impostos e explosão dos custos de mão-de-obra e de importados, o empresário nacional demitia e quebrava.
Da assessoria presidencial, nova solução salvadora: envio de um projeto de lei triplicando o custo de demitir trabalhadores. Enquanto o projeto era discutido, o número de demissões sextuplicou.
A partir daí, a pressão por desvalorizar o real tornou-se irresistível. Claro, os mesmos 30% da maxidesvalorização foram adotados no reajuste geral de salários. A inflação disparou.
Observando essas loucuras, o capital estrangeiro fugia a um ritmo de US$ 3 bilhões por semana.
O Banco Central manifestou-se feliz com o movimento, pois nossas reservas internacionais eram excessivas. O ritmo da fuga subiu para US$ 6 bilhões -por dia.
O ministério pediu demissão coletiva, para facilitar a tarefa do presidente de flexibilizar o Real (nessa altura, ele havia engavetado seu projeto de reeleição e cabalava votos, inutilmente, para eleger-se subsíndico no seu prédio).
Quando a Ana Maria Jul, do FMI, chegou ao Brasil para assumir o Ministério da Economia, acordei.
Felizmente, era apenas um pesadelo.

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