São Paulo, quinta-feira, 15 de fevereiro de 1996
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Os intelectuais e os miseráveis

LUÍS NASSIF

No século passado, o imperador decidiu indicar todos os juízes para as cidades brasileiras.
A alegação era a de que a Corte representava a civilização cristã ocidental e, como pai de todos os brasileiros, cabia ao imperador impedir nos grotões que o poder local impusesse a lei sobre os mais fracos.
A lei não chegou aos grotões; mas as indicações políticas para o Judiciário, sim.
Um empresário brasileiro visionário, de título barão de Mauá, solicitou autorização para abrir um banco em regime de sociedade anônima, que lhe permitiria injetar na economia dinheiro abundante a juros civilizados.
O imperador negou porque, na França, um banco dera um tombo na praça e, como pai de todos os brasileiros, ele não iria permitir que algo semelhante ocorresse com a poupança do brasileiro.
A poupança virou pó com o encilhamento; mas o dinheiro barato não chegou.
O imperador não acreditava no povo por esperteza. Muitos críticos da revisão dos direitos trabalhistas não acreditam por não conseguirem se livrar do paradigma autárquico e autoritário -que permitiu ao sistema político brasileiro oferecer rega-bofes humanitários inesquecíveis nos quais os pobres eram álibi e não beneficiários.
Direitos individuais
Como gosta de lembrar o ministro do Trabalho, Paulo Paiva, a legislação getulista conferiu direitos sociais aos trabalhadores, mas não os direitos da cidadania.
Era necessário organizar a classe trabalhadora, dividida entre o anarquismo dos imigrantes e o ruralismo dos locais.
Montou-se um arcabouço que jogou todo o sistema debaixo do manto institucional do Estado, não abrindo nenhum espaço para a busca de soluções negociadas, que permitissem à classe operária crescer e abrir mão da mediação política dos humanitários.
As reivindicações tinham que ser unitárias -do Oiapoque ao Chuí- para que pudessem ser politicamente amarradas a sindicatos oficiais.
Com a unicidade sindical e o imposto obrigatório sustentando esse modelo, o Ministério do Trabalho determinava quem podia ou não representar a classe trabalhadora.
Todos os direitos dos trabalhadores passaram a ser jurídicos. Capou-se qualquer possibilidade de que pudessem ser conquistados por intermédio de negociações.
O instrumento maior desse cala-boca político era um formidável conceito de direitos individuais que impedia qualquer forma de negociação.
A lei determinava o que era ou não direito. Nenhum trabalhador, por mais dono de seu nariz que fosse, poderia negociar novas formas de direito que não se enquadrassem no arcabouço institucional vigente.
Isso significaria comprometer um modelo que pretendia impor a lógica do Estado sobre a nação.
Quem é fraco?
Os argumentos contra o acordo firmado pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo -no qual se aceitam contratos de trabalho provisórios- são extravagantes, mas fiéis à tradição política brasileira.
Sustenta-se que o acordo deixa os trabalhadores indefesos. Como assim, se está sendo firmado por um dos maiores sindicatos do país?
Nas últimas décadas, quem garantiu o avanço dos direitos dos trabalhadores? Essa legislação castradora ou o atrevimento do movimento sindical do ABC, derrubando vigas legais apodrecidas e fazendo a legislação correr atrás da realidade?
Diriam outros: o problema não é o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, mas a extensão desse tipo de acordo a sindicatos menos organizados.
Como assim, se o acordo é restrito apenas àquelas empresas que aderirem a ele? Os direitos individuais continuam valendo para todos os demais trabalhadores do país.
Ah, mas o acordo pode servir de álibi para que empresários mal-intencionados estendam seus termos para setores de baixa organização sindical.
Como se setores de baixa organização sindical pudessem garantir qualquer reivindicação, dentro do velho ou do novo modelo trabalhista.
Louve-se o coração extraordinariamente bondoso dos críticos. Se eles consideram que sabem mais sobre os interesses dos trabalhadores do que eles próprios, deixem de lado a pena e iniciem uma promissora carreira sindical.
Certa vez, um ghost-writer de Joãosinho Trinta cunhou uma frase definitiva: "Quem gosta de miséria é intelectual".
Merecia um adendo: "Intelectual gosta de miséria, desde que o miserável saiba qual é o seu lugar".

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