São Paulo, sexta-feira, 16 de fevereiro de 1996
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Mangueira não cobra pedágio

LUÍS NASSIF

A imagem -de forte impacto- foi utilizada para torpedear o acordo trabalhista patrocinado pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, aceitando o contrato provisório de trabalho.
Se o governo resolveu abrir mão de suas responsabilidades sociais, melhor faria em transferir suas atribuições para os narcotraficantes.
Isso é dito no momento em que a maior atração do país é uma novela estrelada por um cineasta norte-americano que confessa ter pago narcotraficantes pelo direito de filmar em uma favela da mais conhecida cidade do país.
Para quem vive flanando por um mundo ideal, só se aceita uma situação na qual o Estado assuma plenamente todas as responsabilidades que deveriam ser repartidas com o país.
Lamento informar, mas:
1) Por mais difícil que seja acreditar, mesmo antes do acordo do Paulinho (o presidente do sindicato), o Estado brasileiro já havia falhado na promoção do bem-estar social.
2) Pouquíssimas pessoas sabem disso -só o cineasta Spike Lee e a torcida do Flamengo-, mas, em muitos guetos, o lugar do Estado já foi ocupado pela contravenção e não pela sociedade formal.
Debater as causas dessa tragédia poderia trazer um pouco de racionalidade à discussão.
Intermediação
As incursões da Xerox do Brasil na área social podem dar uma leve pista para entender esse quadro institucional, que impede qualquer forma de solução que não passe pelo Estado -seja um acordo trabalhista ou um investimento social.
Anos atrás, assumiu sua direção um grupo de brasileiros com visão social -"avis rara" no universo empresarial brasileiro.
Quando o governo Quércia, em São Paulo, lançou o projeto "adote uma escola", a empresa adotou a sua e contratou uma empreiteira que definiu um projeto total de reformas, ao custo de US$ 80 mil.
Foi proibida de continuar. Reforma de escola é atribuição exclusiva dos poderes públicos -assim como discutir direitos de trabalhadores é papel exclusivo da Justiça do Trabalho.
A empresa deveria doar o dinheiro para o Estado, que já tinha a empreiteira escolhida para fazer a obra -ao módico custo de US$ 250 mil.
As goteiras continuaram batendo na testa dos alunos da escola rejeitada.
Subversão
Recentemente, a Xerox resolveu "adotar" a rua de sua sede central, nas imediações do cais do porto do Rio de Janeiro.
O pior pedaço era a Escola Estadual Dona Darcy Vargas. A diretora pediu uma pintura. A Xerox ofereceu uma reforma.
O poder público proibiu, porque a empresa que quiser ajudar tem de pagar em dinheiro para que o Estado contrate a obra e escolha a empreiteira, e o deputado estenda a faixa.
Num impulso de neoliberalismo selvagem, a Xerox articulou uma conspiração.
A diretora abriu a escola em um fim-de-semana, a Xerox entulhou-a de material de reforma e pais e alunos ocuparam o próprio estadual, trabalhando em regime de mutirão.
Observou-se frenético movimento de autoridades de diversos calibres, tentando brecar a subversão. Por sorte, o setor público é lento e, quando conseguiu liminar proibindo a obra, a reforma já tinha sido completada.
Narcotraficantes
Há oito anos, a Xerox resolveu enfrentar poder público muito mais eficiente que o Estado: os narcotraficantes que controlam os morros cariocas. Decidiu investir em um projeto esportivo no morro de Mangueira.
Numa reiterada atitude subversiva, em lugar de autorização junto ao poder político ou jurídico, buscou-a junto à própria comunidade.
Sentou-se para conversar com a associação dos moradores, pediu as bênçãos de dona Zica e dona Neuma, montou um centro esportivo modelar e botou a criançada para pular obstáculos -em vez de pular muros.
A Xerox investe no projeto verba anual de US$ 700 mil.
Nenhum centavo passa pelos poderes públicos e só 4% são consumidos pela parte administrativa -porque as mães do morro, num gesto de clara provocação às mais caras tradições burocráticas brasileiras, depois de trabalhar o dia inteiro de graça para a comunidade, ainda voltam para casa exibindo insuportável sorriso de satisfação.
Para frequentar o projeto olímpico, as crianças precisam estudar e participar de projetos profissionalizantes.
Há quatro anos (!) o juiz de menores do morro não registra um auto de infração envolvendo as crianças de Mangueira.
Para garantir sua mão-de-obra, os narcotraficantes têm de apelar para crianças de outros morros. Os próprios narcotraficantes preservam o projeto, porque entendem ser uma saída para seus filhos.
Nos últimos anos, a Mangueira levou todos os troféus dos campeonatos brasileiros dos quais participou. Além de pátria do samba, virou potência esportiva.
Se quisesse filmar seu clipe por lá, o cineasta Lee teria duas vantagens: não pagaria pedágio, conheceria de perto a música mais rica do Brasil e um pedaço do país que resolveu parte de seus problemas -sem Estado e sem contravenção.
(O morro Dona Marta -cujos traficantes cobraram o pedágio do cineasta- tem um único posto de saúde pública, que está fechado há mais de ano e meio. Por culpa do Paulinho dos metalúrgicos, obviamente).
Previdência
O único aspecto do acordo que tem externalidades -isto é, traz consequências para o conjunto dos trabalhadores- é a redução dos encargos previdenciários, especificamente.
Deveria se subordinar a uma discussão mais ampla sobre a desoneração da folha.

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