São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996 |
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Verger historiador
JOÃO JOSÉ REIS
Pierre Verger escreveu vários trabalhos que se poderia dizer especificamente de história. É o caso de "Notícias da Bahia - 1850" (Salvador, Corrupio, 1981), espécie de vida cotidiana do baiano em meados do século passado. É também o caso de "Os Libertos" (São Paulo, Corrupio, 1992), onde discute sete estratégias possíveis de integração e conflito de ex-escravos na Bahia oitocentista. Mas o principal livro de Pierre Verger como historiador é "Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos Entre o Golfo de Bénin e a Bahia de Todos os Santos" (São Paulo, Corrupio, 1987), publicado originalmente na França 20 anos antes de aparecer em sua edição brasileira. O livro é um estudo detalhado do tráfico de escravos -em suas dimensões econômicas, políticas e outras- entre a Bahia a região que engloba o sudoeste da atual Nigéria e antigo Daomé (atual República do Bénin). Os números do tráfico apresentados por Verger continuam a ser basicamente repetidos por historiadores nacionais e estrangeiros. Mas em "Fluxo e Refluxo" Verger não faz apenas a descrição de operações comerciais e a apresentação de estatísticas. Na verdade, ele chegaria ao tráfico em busca de uma explicação para o tipo de África que ele encontrara na Bahia na década de 40. Por que a cultura ioruba era tão influente entre os negros e mestiços baianos? Ele precisou com seus números que nas últimas duas décadas, já em sua fase ilegal, o comércio negreiro baiano vitimou quase exclusivamente os iorubas (aqui chamados nagôs), que atravessariam o Atlântico aos milhares. Tal concentração étnica teria levado ao surgimento, no extremo baiano da rota do tráfico, de uma nova civilização, fundamentalmente harmônica, tendo na religião dos orixás um de seus principais pilares. Obviamente esse processo não se deu sem abalos. O historiador discute, por exemplo, o ciclo das rebeliões escravas na Bahia da primeira metade do século 19. Esse tipo de resistência é um aspecto quase irritante para Verger, homem que preferia pensar -e o disse várias vezes- nas relações raciais e culturais na Bahia como encontro entre águas tranquilas. Atribuindo ao Islã a responsabilidade pelas revoltas, o autor salvaguarda o que via como impulso basicamente integracionista dos iorubas. Veger provavelmente discordaria dessa interpretação de sua obra. Gostava de dizer que não interpretava os fatos, apenas os expunha. Gostava de dizer-se antiacadêmico, apesar de ser professor do departamento de antropologia da Universidade Federal da Bahia, dado de seu currículo que raramente mencionava. E "Fluxo e Refluxo" foi uma tese acadêmica, apesar de Verger afirmar em sua introdução que Fernand Braudel o convidara a escrevê-la interessado em seu antiacademicismo. "Fluxo e Refluxo" tem o aparato acadêmico que nos permite, através das notas de rodapé, acompanhar a exaustiva pesquisa de seu autor em arquivos na Bahia, em Portugal, Inglaterra, França e países africanos. Ao mesmo tempo, em sua insistência pela neutralidade, Verger decidiu fazer os documentos falarem, transcrevendo-os copiosamente. Esse método é em grande parte responsável por levar o livro às 718 páginas que tem. Há muito de positivista nesse método, mas pensando bem tratava-se talvez do fotografismo do autor. É como se ele entendesse a construção de sua narrativa como uma colagem de "retratos" documentais que assegurariam a fidelidade e a isenção do historiador aos fatos. O Verger fotógrafo se incorporou ao Verger historiador. Mas, é claro, tal como há escolha de objeto, ângulo e luz na fotografia, além das fotos a serem exibidas, há também escolha do documento e da ordem em que aparecem num livro -e ambas as operações implicam numa interpretação da realidade. Texto Anterior: O FILHO DO TROVÃO Próximo Texto: Riscos do pensamento único Índice |
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