São Paulo, terça-feira, 20 de fevereiro de 1996
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Crise econômica 'reconduz' Cuba à América Latina

JORGE CASTAÑEDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Enquanto a "latino-americanização" de Cuba avança a passos acelerados, talvez seja conveniente tecer algumas reflexões sobre os fatores que por muitos anos permitiram à ilha evitar tal estigma. Também se impõem algumas conjeturas sobre a relevância da via cubana para outras partes do continente e sobre as analogias que possam ser traçadas.
A "latino-americanização" consiste, sobretudo, no reaparecimento brutal da desigualdade em Cuba. Inevitavelmente, em consequência de erros ou de omissões, a ilha socialista apresenta hoje (na verdade desde 1990, pelo menos, mas de forma mais evidente nos últimos meses) as características das sociedades do hemisfério.
Os desníveis entre ricos e pobres, poderosos e fracos, brancos e negros, cidade e campo voltam a se ampliar. As pragas da desigualdade estão expostas à luz do dia: mendigos nas ruas, criminalidade nas zonas prósperas, prostitutas nas esquinas, milhares de cubanos -funcionários do governo ou cidadãos particulares- explorando turistas, empresários e diplomatas.
Se a descrição provoca uma sensação de déjà vu, não é por acaso: Cuba volta a parecer-se com o México, a República Dominicana, o Peru. Nunca deixou completamente de fazê-lo, e ainda não está inteiramente semelhante, mas a tendência é irreversível.
Qual foi a "via cubana" para fugir da desigualdade? Talvez ela possa ser resumida em três grandes atributos: um governo decidido a reduzir as desigualdades e disposto a perseverar nesse esforço por décadas; a expulsão/expropriação dos ricos, simplesmente enviando-os a Miami; e a existência de uma fonte quase inesgotável de recursos que pagou o custo das primeiras decisões: a URSS.
Graças a esses três eixos, a Revolução Cubana e Fidel Castro realizaram algo que muito poucos países da região conseguiram: uma melhora significativa na distribuição da renda, a nivelação das oportunidades e a redução das desigualdades mais repulsivas e dolorosas: as raciais e étnicas, as que separam moradores urbanos dos camponeses sem terra etc.
O custo foi enorme, e a tendência talvez fosse insustentável, com ou sem a queda do socialismo, mas os resultados foram visíveis. Representaram conquistas em educação, esportes, saúde pública, segurança e dignidade da população. Apesar de outras nações latino-americanas gozarem de estruturas sociais semelhantes às de Cuba -como Argentina, Uruguai, e Costa Rica-, elas não as ergueram a partir de uma base qualitativamente diferente. Em todo caso, possuem hoje uma configuração semelhante à de meio século atrás ou até menos igualitária. Existe, entretanto, uma grande exceção. Um país latino-americano que a partir dos anos 50 também viu transformada sua estrutura social: Porto Rico.
Graças à enorme transferência de recursos procedentes dos EUA, à imigração maciça em direção a Nova York e às sucessivas etapas da construção do estado assistencial americano, a "Pérola dos Mares", a partir do final dos anos 70, se converteu em uma sociedade de classe média baixa. Não chegou ao ponto dos EUA ou da Europa: a proporção de pobres continua elevada, mas não pode ser comparada ao resto da América Latina.
Se, de acordo com cálculos recentes, o total de transferências de todo tipo da URSS a Cuba chegou anualmente a quase 20% do PIB, a soma de recursos americanos canalizados anualmente a Porto Rico também se aproxima disso. Com as entregas de "food stamps" (vales-alimentação), efetivamente a quase 50% da população, de "Pell grants" (doações) para o ensino, o sacrifício fiscal de Washington pelo artigo 936 do Código Fiscal e os "entitlements" (direitos) de vários tipos (pensões militares, assistência médica a cidadãos de terceira idade, pensões etc.), o fluxo líquido de dólares se transformou em condição para o combate à desigualdade.
Esse combate tornou-se viável por dois outros motivos. O primeiro é mais conhecido. Trata-se do êxodo de quase um quarto da população -diferentemente de Cuba, principalmente dos mais pobres- ao nordeste dos EUA, entre o início dos anos 50 e o final dos 60. Graças, também, à ignominiosa "Jones Act" (Lei Jones) dos anos 20, que lhes outorgou cidadania norte-americana restrita, os habitantes de Porto Rico desfrutaram um privilégio inexistente para outros latino-americanos: trabalhar legalmente nos EUA, ir e vir livremente, sem risco. Se Cuba recebeu da URSS recursos maiores que Porto Rico dos EUA, Porto Rico, em contrapartida, pôde transferir para o Hemisfério Norte um contingente de emigrados maior.
Mas essa mesma liberdade obrigou tanto o governo dos EUA quanto as autoridades porto-riquenhas, encabeçadas desde o final dos anos 40 pelo Partido Popular, de Muñoz Marin, a desencorajar a emigração, mediante uma política assistencial. Era preciso pagar os porto-riquenhos para que não emigrassem. Para isso, foi projetado e erguido o único dispositivo assistencial perfeito dos EUA, e foi levado a cabo o único esforço -além do cubano- sustentado e eficiente de redução de desigualdades na América Latina.
Como financiar esse esforço? Com dinheiro. De quem? Do contribuinte norte-americano. As razões: evitar migração maior, desativar o sentimento independentista e mostrar um modelo que serviria de vitrine. Se o resultado parece paradoxal -metade da população vivendo do tesouro público, índices estratosféricos de criminalidade, dependência de drogas e desemprego-, ele deve ser comparado à situação no resto da América Latina, não à Califórnia.
Dois países, três varinhas de condão mágicas: recursos, migração, compromisso e vontade, por motivos diferentes, de reduzir os abismos sociais. Ao ver enfraquecidos esses fatores -no caso de Cuba, devido à queda do socialismo, no de Porto Rico, pelo déficit orçamentário dos EUA-, a ancestral desigualdade latino-americana voltou a mostrar seu rosto tão conhecido. As consequências têm sido mais dramáticas em Cuba, mas talvez se mostrem mais permanentes em Porto Rico.
Além desses desenlaces agridoces, seria útil tirar algumas conclusões: sem um governo decidido a fazê-lo, sem uma transferência gigantesca e duradoura de recursos públicos do exterior e sem o deslocamento de parte importante da população para o exterior, será difícil ou mesmo impossível reduzir a desigualdade vigente na maioria dos países da América Latina. Saber a quais países essa lição se aplica -e a quais não- é uma das grandes perguntas de nossa época.

Tradução de Clara Allain

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