São Paulo, quarta-feira, 21 de fevereiro de 1996
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Cinzas e nada mais

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Não era padre, já era monsenhor. E atendia pelo nome de monsenhor Cinzas, assim mesmo, no plural. Ao contrário do que o nome poderia sugerir, não era incolor, abúlico, mas sanguíneo, virulento, pasto de imensas cóleras contra a iniquidade dos homens. Foi um dos espantos quando entrei no seminário: saber que havia no mundo um sujeito chamado Cinzas e que chegara a monsenhor. Brincando brincando, eu poderia chegar a cardeal.
Depois aprendi que o nome dele era outro, Arnaldo não-lembro-mais-de-quê, acho que Arnaldo da Veiga Pereira ou nome parecido. O apelido vinha de épocas imemoriais, ele gostava de lembrar que tudo na humana lida termina em cinzas. Sua "finest hour", obviamente, era a quarta-feira de Cinzas. Acredito que a odiava profundamente -e por isso mesmo, fazia dela o seu grande dia.
Ele passava o ano todo lembrando que toda a glória, toda a alacridade, toda a pulcritude, mais cedo ou mais tarde, sem metáforas nem ressentimentos, acabam em um punhado de cinza.
E acredito, também, ter sido ele o primeiro a criar o que hoje chamamos de bordão. Quando o Fluminense foi tricampeão em 1938 -segundo me contaram- ele, que era Botafogo, invadiu a festa das Laranjeiras e ficou gritando: "Cinzas e nada mais! Cinzas e nada mais!"
Sua ferocidade era lendária, letal. Também me contaram que agredira um folião na terça-feira do Carnaval de 1944 que, no bonde, berrara em seus ouvidos: "É hoje só, amanhã não tem mais!" Deu-lhe um bofetão e ameaçou os demais passageiros: "Cinzas! Cinzas e nada mais!"
E o conheci velho, desbotado, já um pouco cinzento, tivera um derrame, mesmo assim revivia em toda a sua glória quando chegava a quarta-feira de Cinzas. Era, ao mesmo tempo, sua epifania, seu Natal, sua Páscoa e seu triunfo.
Foi meu professor de grego durante dois anos. Tenho um bom motivo para só ter aprendido uma única frase no idioma de Homero: cinzas e nada mais!

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