São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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a superfície do silêncio

CAIO TÚLIO COSTA

No Brasil, ninguém questiona os deveres básicos do Estado
Todos os brasileiros que passaram por Miami depois do último furacão, e não foram poucos, puderam ver que, em duas semanas, tudo estava praticamente reconstruído. T-u-d-o.
Não vou cometer aqui a besteira de comparar o desenvolvimento dos países do Primeiro Mundo com o nosso claudicante caminhar rumo ao mesmo. Lá, no que dependia do Estado, tudo que foi destruído pela natureza foi reconstruído em duas semanas.
Veja o caso doméstico. Quanto tempo levará o Rio de Janeiro para se curar da tragédia do dilúvio? As vítimas terão a assistência devida do Estado?
No limite, vale a pena fazer estas perguntas no Brasil? Esta é a questão. Porque quase ninguém questiona, seja na Justiça, em praça pública ou nos meios de comunicação, os deveres básicos de um Estado que acabou se imiscuindo em quase todos os compartimentos da existência e acaba fazendo tudo mal e porcamente.
Existe um entorpecimento generalizado em relação aos precários serviços prestados pelo Estado, pelos quais todos os cidadãos pagam.
Veja o caso da falta d'água em São Paulo e adjacências. Mesmo chovendo do jeito que chove, falta água. Veja o caso do IPTU. Nenhum cidadão decente se incomoda em pagar o preço que for pelo Imposto Territorial Urbano se tiver, em contrapartida, serviço público à altura -rua segura, limpa, saneada, sem buracos e sem remendos. Isso acontece na sua rua?
Contei aqui uma vez o clássico caso do escritor e poeta americano Henri David Thoureau. Ele acabou passando uma noite na cadeia porque se recusou a pagar imposto em protesto contra a escravatura e a guerra. Usou o imposto como arma de protesto político.
No Brasil, essa discussão é até obsoleta, porque a desobediência civil estaria subvertida na base: pagando ou não o imposto, os serviços que o Estado tem de prestar, não presta. Caso complicado para os historiadores do futuro. Terão de explicar como o povo vivia num país onde quanto mais se pagava imposto, menos se recebia em troca.
Preocupante, portanto, é a anestesia generalizada em relação às obrigações mínimas do Estado. Sem falar que, num país sério, diversas obrigações nem deveriam ser do poder público.
Existe um silêncio generalizado ou, quando se fala ou se escreve um artigo como este, uma surdez generalizada.
Não é a natureza que coloca determinadas regiões do país em estado de calamidade, e sim os sucessivos governos, tucanos incluídos, que continuam levando o país às diferentes calamidades existenciais.
O povo honesto trabalha e paga imposto, muito quieto. Os sons que existem "não passam de bolhas na superfície do silêncio", como definiu certa vez um músico atonal, John Cage, que adorava Thoreau.
Só não se sabe até quando.

Ilustração: Edward Kienholtz, o hospital do estado, 1966

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