São Paulo, quarta-feira, 28 de fevereiro de 1996
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"They don't care about us"

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY

Spike Lee e Michael Jackson incomodaram as autoridades quando resolveram mostrar em vídeo a favela do morro de Dona Marta como um dos mais importantes símbolos de como "eles não se importam conosco". Os que detêm o poder, nos palácios, ministérios, no Congresso, nos Tribunais, no topo das grandes empresas pouco têm pensado em soluções para transformar a vida dos que estão nas favelas, nas palhoças, nas palafitas e nos cortiços.
Passados 14 meses do governo Fernando Henrique, é possível recordar as 16 viagens do presidente da República aos mais belos lugares do México, da Índia, da China etc. Somam mais vezes do que suas raras visitas às populações destituídas de direitos no Brasil. Junto com a sra. Ruth Cardoso, presidente do Conselho da Comunidade Solidária, ainda não conseguiu engajar os ministros na direção de uma verdadeira revolução social no Brasil.
Os titulares da Fazenda e do Planejamento têm sua agenda carregada de encontros com aqueles que os levam a decisões como a de carrear bilhões de reais para salvar instituições financeiras. Dizem que não o fazem para beneficiar banqueiros, mas para resguardar a estabilidade da moeda e todos os correntistas daquelas instituições.
É importante que os ministros da área econômica ouçam os representantes das principais entidades empresariais. Mas lhes faria muito bem se pudessem atentar para o clamor dos desempregados, dos sem-terra, dos pequenos agricultores, dos que trabalham em atividades que lhes proporcionam remunerações abaixo da linha da sobrevivência.
A visita de Lee e Jackson foi positiva. Já as do presidente ao exterior podem até ser muito produtivas para os que ainda não alcançaram direitos à cidadania no Brasil se indicarem caminhos mais saudáveis do que os que foram tentados, sem sucesso, até agora.
O governo tem limitado sua política social ao esforço para conseguir a estabilidade da moeda, no que em boa parte tem conseguido. O crescimento apenas moderado da economia não tem sido acompanhado pelo aumento das oportunidades de emprego. Os assentamentos dos sem-terra têm sido modestos. O Programa Comunidade Solidária mostrou apenas o impacto da boa intenção.
Pode o governo agir com maior energia nessa área social sem prejuízo de se resguardar a estabilidade da moeda. É preciso introduzir um novo elemento no debate em torno das reformas. A incidência dos encargos sociais, pelo menos em parte, sobre outra base, e a definição de direitos devem levar em conta a instituição de um Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM).
Essa é a recomendação de um número crescente de economistas, a exemplo do exposto pelo Nobel de Economia James E. Meade em seu último livro, "Full Employment Regained?". O debate sobre o direito à renda mínima vem sendo acompanhado de múltiplas experiências em países nos mais variados estágios de desenvolvimento.
Num mundo em que a automação se acelera, em que os trabalhadores conquistam acordos para a redução da jornada de trabalho, em que os metalúrgicos de São Paulo propõem a dispensa da cobrança de alguns encargos sociais, há que se pensar em formas alternativas de financiar o direito de todas as pessoas usufruírem da riqueza nacional.
Aqui se intensifica o debate a partir das experiências pioneiras de Campinas e do Distrito Federal, nas quais o direito à renda mínima relaciona-se à frequência de crianças de até 14 anos nas escolas. Mais sete municípios estão implementando programas semelhantes: Salvador, Ribeirão Preto, Londrina, Sertãozinho, São Joaquim da Barra, São João da Boa Vista, Volta Redonda.
Por iniciativa de parlamentares e prefeitos de quase todos os partidos, projetos que instituem a renda mínima estão sendo debatidos nas Câmaras Municipais de 50 municípios e nas Assembléias Legislativas de dez Estados.
Pesquisadores em diversas instituições de ensino superior estão realizando estudos sobre as variadas formas do PGRM no Brasil e no exterior. De 12 a 14 de setembro, em Viena, acontecerá o 6º Congresso da "Basic Income European Network", onde será debatido o direito a uma renda pequena e incondicional, porém suficiente para as necessidades básicas das pessoas.
Stephen Kanitz, autor de "O Brasil Que Dá Certo", propôs-me que apresentasse um projeto pelo qual todo cidadão deveria ter o direito a um cartão de crédito com a possibilidade de gastar modesta quantia por mês, pagando posteriormente pelo empréstimo.
Creio que o desenvolvimento do PGRM possibilitará em breve que todo cidadão residente no Brasil receba um cartão magnético que lhe permita gastar uma certa quantia anualmente.
O PGRM contribuirá muito para resgatar a cidadania. De onde viriam os recursos para o projeto? Trata-se de realizar uma opção pelo prioritário.
De onde saíram os recursos para o Proer? Por que abrir mão de R$ 21 bilhões (3,2% do PIB) em isenções e subsídios fiscais para os que já detêm grande patrimônio? Por que destinar os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, a taxas de juros menores que as de mercado, para os proprietários de empresas, ainda que com promessa de realizar investimentos e criar empregos? Como justificar a distribuição de cestas básicas em vez de se criar um programa mais digno, onde prevaleça o direito a uma renda em moeda?
Em sua palestra realizada no Colégio do México, Fernando Henrique fez um forte "apelo por uma ética da solidariedade, a redefinição de valores nacionais e, principalmente, a luta contra a desigualdade, que as elites encaram hoje como algo natural e até aceitável".
Chamou a atenção para a observação do secretário de Trabalho do governo Clinton, Robert Reich, de que "a ruptura do sentimento de solidariedade tem grave repercussão na própria idéia da identidade nacional".
Reich é um dos grandes entusiastas do EITC (crédito fiscal por remuneração recebida), instrumento que guarda relação com o PGRM. Mas os principais ministros do governo FHC têm demonstrado resistência a estudar a proposição, cuja implementação seria consistente com a ética da solidariedade.

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