São Paulo, quinta-feira, 29 de fevereiro de 1996
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Ditaduras na América Latina

SAULO RAMOS

A Constituição do Peru, em 1992, ainda conservava o art. 307, que proibia o golpe de Estado e, com romântica ingenuidade, dizia que, na hipótese de ser violada a democracia, todos os atos de uma provável ditadura seriam nulos e, quando restabelecido o regime de liberdades, os ditadores e seus colaboradores deveriam ser severamente punidos.
Alberto Fujimori, que gosta de ser chamado de engenheiro, não deu a menor bola para o romantismo do constituinte peruano. Desferiu um bruta golpe de Estado naquele país, fechou o Congresso e o Supremo Tribunal, tratando, por via das dúvidas, de editar uma lei de anistia, que o perdoava disso tudo.
Não deixa, igualmente, de ser engraçada essa preocupação dos ditadores com a "legalidade", embora sem Poder Judiciário que a reconheça e aplique.
Dois dias antes de "cerrar" o Supremo Tribunal do Peru, Fujimori recebeu conselho de um amigo, o doutor norte-americano Douglas North, que o alertou sobre a necessidade do crescimento econômico fundar-se no funcionamento democrático das instituições e, sobretudo, na independência do Poder Judiciário. Douglas North fora convocado para opinar sobre os planos econômicos do novo presidente peruano.
Era apenas o Prêmio Nobel de Economia de 1993. De nada valeu seu conselho. O nipo-inca não teve dúvidas: fechou a Corte Suprema.
Ao ser "reeleito" em 1995, com 68% dos votos, Fujimori declarou que ninguém mais teria o direito de contestar a legitimidade de seu regime diante de tão expressivo resultado eleitoral.
Enciumado, Saddam Hussein, mais tarde, foi eleito por unanimidade dos iraquianos, o que lhe deu supremacia sobre Fujimori e, inclusive, o direito de mandar matar os genros, as irmãs dos genros e os sobrinhos dos genros, já que adversários políticos não existiam diante dos números saídos das urnas.
O chamado líder peruano, com os modestos 68%, admitiu a existência de opositores, representados pelos outros 32% que ainda restaram da chacina de Canto Grande, prisão em que se encontravam encarcerados, em 1992, 500 de seus adversários políticos, acusados de estarem entrincheirados nas celas, de não trabalharem, de provocarem desordem no estabelecimento penal, pronto.
A prisão foi bombardeada com bazucas, granadas de magnésio e metralhados os presos que tentavam fugir daquele inferno. Mortos? Mais ou menos cem, o que não chega a igualar-se com o Carandiru, mas eliminou expressivas lideranças políticas contrárias ao regime nipo-inca.
Mas Fujimori tem sólida e extensa formação universitária, o que irremediavelmente seduz Fernando Henrique. Além das peruanas, cursou a Universidade de Strasbourg, França, na Alsácia, terra de excelentes vinhos brancos, pós-graduação pela Universidade de Winsconsin (EUA). Presta-se um pouco à desconfiança o título que recebeu de doutor "honoris causa" da Universidade Particular San Martin de Porres.
Sustentou que a democracia, pela qual se elegeu, era falsa e que "el Poder Legislativo y el Poder Judicial traban la acción del gobierno". Concebeu a "democracia verdadeira" e, num rasgo de profunda modéstia, chegou a sugerir que ela poderia servir de modelo para o resto do mundo. E resolveu reformular o Tribunal de Garantias Constitucionais, o que inegavelmente significa segurança para a democracia verdadeira uma vez que a antiga corte sustentava a democracia falsa. Aí temos a nova face da ditadura latino-americana.
Sem a capacidade oratória de Fidel Castro, não consegue esconder a pretensão de continuar no poder por meio de eleições, o que dá alergia no ditador cubano à moda antiga, encastelado no governo há 36 anos, sob uma coleção de também invejável número de mortes, a que se juntam, agora, as tripulações dos pequenos aviões, civis e desarmados, abatidos pelos caças fidelistas.
Aliás, Fidel Castro um dia terá de explicar o mais triste assassinato político da América Latina, esse nosso continente de tantos sonhos e tanto sangue.
A morte de Che Guevara, que se encontrava na Bolívia, em local somente conhecido por Fidel. Não se sabe como as Forças Armadas bolivianas, com os boinas verdes por elas convocados, encontraram o esconderijo com tamanha facilidade. Mas se sabe que o sanguinário general Antonio Arguedas, chefe da polícia boliviana, depois de ter enviado as mãos de Guevara ao ditador cubano para comprovar a morte do heróico sonhador, no ano seguinte fugiu para Cuba. Era agente de Fidel na Bolívia.
Pequenos detalhes que os esquerdistas brasileiros fingem ter esquecido. Tanto quanto nossos direitistas relevam a "verdadeira democracia" de Fujimori.
A América Latina dá de tudo em matéria de ditadura, as de esquerda cantadas por poetas, como Guillem e Neruda, e as de direita, aplaudidas por democratas como Fernando Henrique. O azar de Hitler e Mussolini foi terem sido ditadores europeus. Por aqui, até que poderiam ter-se saído melhor.

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS, 62, é advogado em São Paulo, foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

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