São Paulo, sexta-feira, 1 de março de 1996
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João Cabral encara poema como 'artefato'

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O instituto Moreira Salles acaba de lançar uma revista semestral, "Cadernos de Literatura Brasileira". Este primeiro número é dedicado a João Cabral de Melo Neto. Há alguns textos inéditos, fotos, uma entrevista e um longo ensaio de João Alexandre Barbosa sobre o poeta pernambucano.
O volume impressiona pelo cuidado gráfico; o mais certo seria dizer: o luxo da edição. Mais do que uma revista, parece uma homenagem ao poeta. Mas justamente essa idéia de homenagem é descartada pelos organizadores; João Cabral tem pavor de homenagens -"Manuel Bandeira morreu disso", diz.
Trata-se, então, de "fazer justiça" a um autor que "tem raros rivais quando se considera a poesia do idioma neste ou em qualquer outro século".
Precisamente um caso, portanto, em que fazer justiça e prestar homenagem são duas coisas que se confundem. Pouco importa; a obra de João Cabral tem mesmo raríssimos rivais no idioma; foi capaz de recriar, o que é ainda mais raro, a própria idéia que temos de poesia.
Digo isso porque, no artigo de quarta-feira, terminei sendo muito leviano com relação ao assunto. Meti-me a criticar rapidamente, nos últimos parágrafos, a idéia de "função poética", tal como é definida pelos formalistas russos, e não fui honesto nem com o pensamento deles nem com o que eu próprio queria dizer.
Terminei dizendo que a poesia pode ser entendida como uma espécie de "onomatopéia sofisticada", na qual os esforços expressivos, confessionais, se misturam ao propósito informativo, noticioso, e à forma, à harmonia verbal, criando alguma coisa que "junta" todas as funções da linguagem. Uma concepção confusa demais para ser verdadeira, ou pelo menos para ajudar em alguma coisa.
No fundo, eu estava querendo preservar uma definição de Valéry sobre a poesia -a idéia de que esta vive numa oscilação prolongada entre o som e o sentido, de que a sonoridade de um verso tem de evocar, de algum modo, aquilo a que se refere. Sons farfalhantes para falar de uma árvore, sibilações geladas quando se descreve o vento.
É isso, com efeito -é essa imitação sonora da realidade- que faz o encanto infalível de Valéry, e é isso o que funciona, para nós, leitores do século 20, como senha da maestria poética.
Mas a poesia de João Cabral de Melo Neto, um admirador e seguidor de Valéry, é a contestação claríssima do que foi dito acima. João Cabral segue Valéry no compromisso com a lucidez intelectual, no horror às exaltações do confessionalismo. João Cabral, como Valéry, encara o poema como um "artefato", uma "máquina" destinada a produzir determinados efeitos no leitor.
Só que Valéry confia nessa coisa misteriosa, que é a adequação do som e do sentido; é um poeta dos mais musicais, mais harmoniosos de que se tem notícia. E João Cabral é exatamente o contrário; não há "harmonia imitativa", não há "onomatopéia" em seus versos.
Ele mantém o metro e a rima, mas é como se metro e rima servissem apenas como exigência formal, desdenhando qualquer efeito sonoro que pudessem provocar. A poesia de João Cabral usa a disciplina das sílabas, os imperativos das vogais e das consoantes, mas seu interesse está em outro lugar. Já digo que outro lugar é esse.
Haveria algo de mágico, de irracional na poesia de Valéry, esse racionalista extremado. Acreditar que um som evoca um estado de coisas é ser um pouco feiticeiro. Não há harmonia predeterminada entre a vogal redonda, masculina, irradiante da palavra "sol" e a estrela em torno da qual nosso planeta gira.
Não há harmonia predeterminada, mas há harmonia possível; há uma sugestão "solar" nessa vogal de "sol", e um poeta saberia tirar efeitos dessa coincidência inexplicável.
Não João Cabral, mais racional que Valéry. Abandonando as harmonias do verso, Cabral introduz o leitor a um âmbito mais essencial da poesia. Não sei se é mais essencial. Mas, no fundo desse encontro mágico entre som e sentido, parece estar um outro encontro, a ocupar a alma quando esta se contamina pela poesia: trata-se das semelhanças entre uma coisa e outra. A metáfora, enfim.
O interessante de João Cabral é que nem mesmo a metáfora, a comparação, a percepção das semelhanças entre um objeto e outro fogem a seu espírito racional e analítico. Um poeta qualquer compara sua amada a uma flor, a uma estrela, a qualquer outra coisa. Cabral faz comparações desse tipo. Mas o poema não é a comparação, e sim a explicação das semelhanças em que a comparação se baseia.
Em "Jogos Frutais", por exemplo, Cabral fala o que a mulher amada tem de semelhante a frutas. O poema todo é uma explicação, uma análise da metáfora feita. A comparação entre o canavial e o mar é elaborada, desenvolvida em outro poema, e corrigida, anulada por outro poema parecido. "Estudos para uma Bailadora Andaluza" analisam as relações que uma dançarina possa ter com o fogo, com um cavalo, com o telégrafo, com uma árvore, com um livro, com uma espiga de cana.
É do automatismo da metáfora que João Cabral desconfia; corrige-se; a visão das semelhanças, das harmonias ocultas no mundo, é justificada, analisada, perdendo a sua "naturalidade" poético-visionária.
Cria-se um efeito curioso: como a metáfora é "explicada" em suas coincidências materiais, resta sempre a impressão de que o poema todo é matéfora oculta de alguma outra coisa -a injustiça social, o fazer poético. Metalinguagem e engajamento, os dois "sentidos" que qualquer leitor moderno vê em qualquer texto, surgem aqui num procedimento oblíquo, numa obsessão de clareza e de explicação quando Cabral está tratando de "coisas", quando está fazendo poesia a partir de objetos.
É assim que seus poemas negam, ou pelo menos discutem, as coincidências mágicas entre as coisas, para não dizer das coincidências mágicas entre som e sentido, forma e conteúdo. Justamente as belas superstições -as superstições verazes- em que a poesia tem geralmente se fiado. Que mesmo assim ele seja um poeta, e imenso poeta, é prova de que todo o assunto é mais complicado do que se pensa. Lamento se simplifiquei as coisas no artigo anterior.

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