São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Um câncer diabólico

CLÓVIS ROSSI
DA REPORTAGEM LOCAL

Há hoje, no mundo, o equivalente a 13 "brasis" sem emprego ou vivendo precariamente do subemprego.
O número total de desempregados/subempregados alcança 800 milhões de pessoas, conforme dados apresentados ao recém-encerrado Fórum Econômico Mundial de Davos (Suíça) pela Federação Internacional de Empregados e Técnicos, que representa 11 milhões de trabalhadores.
Como a força de trabalho brasileira é de 60 milhões de pessoas, chega-se aos 13 "brasis" sem emprego ou subempregado no mundo todo.
Pior: não há solução à vista nem sequer consenso sobre causas e soluções para a crise do emprego, o mais sério problema estrutural da virada do século.
O melhor resumo do quadro é do economista belga Henri Sneessens (Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais de Bruxelas): "Trata-se uma doença diabolicamente complexa e revestida, tal como o câncer, de uma multiplicidade de aspectos, cujos mecanismos permanecem mal conhecidos e mal explorados".
É uma doença relativamente recente, o que talvez explique as perplexidades.
O economista norte-americano Paul Krugman (Universidade de Stanford) lembra que, depois da Segunda Guerra Mundial, "as economias ocidentais ofereceram salário e emprego durante toda uma geração".
Mas, a partir dos anos 70, instalou-se no mundo rico uma nítida dicotomia entre emprego e salário.
"Nos Estados Unidos, a maior parte daqueles que procuram trabalho continua a encontrá-lo, mas uma fração crescente de assalariados recebe remunerações que todos, inclusive eles próprios, consideram inferiores à linha de pobreza. Na Europa, os salários regrediram menos, mas é o desemprego de longa duração que se desenvolveu", compara Krugman.
Outro especialista norte-americano põe números nessa constatação teórica: "Em dólares de 1995, o ganho real semanal de um homem empregado full-time caiu de USŸ 590 em 79 para USŸ 540 em 95 e o valor real do salário mínimo reduziu-se 27% desde 79", calcula Alan Krueger, professor de Economia e Assuntos Públicos da Universidade de Princeton.
Na Europa, o que ocorreu foi um enorme aumento nas taxas de desemprego, de uma média de 5% em meados dos anos 70 para 10% agora, meados dos 90.
Resumo do quadro segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho, agência especializada das Nações Unidas): "No longo prazo, o dilema pareceria ser a escolha entre duas formas de pobreza".
No momento, as atenções estão concentradas numa das "duas formas de pobreza", o desemprego, por ser a mais visível.
Alguns especialistas europeus até olham com inveja para os números do baixo desemprego nos EUA, como se fosse um modelo a imitar.
A diferença entre os dois modelos de mercado de trabalho é clara e simples: francamente desregulamentado nos Estados Unidos, país também com baixíssima porcentagem de sindicalizados (15,6% em 1993, menos até do que no Brasil no mesmo ano, 17%).
Na Europa, legislação abundante de proteção ao trabalhador, inclusive na forma de uma rede de bem-estar social muito pujante.
Mas a inveja não contaminou todos os governantes europeus. Nem sequer alguns de seus tecnocratas estão convencidos de que a desregulamentação e a redução da rede de proteção social sejam uma boa resposta.
"Onde traçar a linha divisória entre proteção social e criação de empregos? Nos EUA, há mais criação de empregos e menos proteção social, ao contrário do que ocorre na Europa. Quem está certo ou errado é tema para uma profunda discussão política", escapa pela tangente Jean-Claude Trichet, o presidente do Banco Central francês.
Mas seu seu colega do Bundesbank, o BC alemão, Hans Tietmeyer, é mais objetivo, embora ressalve: "Não vejo panacéia, mas muito esforço para remover impedimentos estruturais ao emprego".
Tietmeyer cita "reformar o sistema de Bem-Estar Social" como uma das formas de remover tais impedimentos.
É uma tese contestada por outros especialistas, como os autores de alentado estudo do CEPR (iniciais em inglês do Centro para Pesquisa de Política Econômica, dos EUA).
O CEPR cita o caso da Grã-Bretanha de Margaret Thatcher para tentar desmontar a tese de que o sistema de Bem-Estar e a rigidez regulatória são inimigos do emprego.
Na Grã-Bretanha, o governo conservador quebrou a espinha dorsal dos sindicatos e promoveu forte desregulamentação, mas não houve correlação alguma com a queda ou aumento do desemprego.
Nos anos 70, antes do thatcherismo, o desemprego era de entre 3% e 6%, subiu para 12,4%, em 1983, quatro anos após a ascensão de Thatcher, caiu no final dos anos 80 e voltou a subir nos anos 90.
Tudo somado, é inevitável voltar-se à imagem do belga Sneessens sobre o desemprego: parece de fato um "câncer diabolicamente complexo, cujos mecanismos permanecem mal conhecidos e mal explorados".

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