São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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A mancha do capitalismo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O chamado desemprego estrutural, essa "mancha na alma" do capitalismo contemporâneo, como define o economista Gilberto Dupas, veio para durar muitos e muitos anos.
Foi-se o tempo em que o setor de serviços, o que mais cresceu nas décadas de 70 e 80, era capaz de absorver a massa desempregada pela indústria. A mesma lógica da automação e da competitividade desenfreada que despede trabalhadores e afeta o setor produtivo também tomou conta dos serviços.
Quem diz é Dupas, consultor econômico de grandes empresas em São Paulo e membro do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. Segundo ele, "excetuando-se uma ou outra medida paliativa, ninguém no mundo sabe o que fazer com o crescente número de excluídos do trabalho".
O que está ocorrendo hoje, diz ele, é um aumento em velocidade impensável da economia informal e a crescente informalização, via terceirização, das relações entre empregador e empregado.
"Os trabalhos informais estão respondendo de maneira surpreendente à questão do desemprego, mas apostar nossas esperanças sobre a dinâmica do setor informal seria quase loucura", ressalva.
Se esses efeitos perversos da globalização são planetários, em países como o Brasil eles tendem a ser agudizados. Não apenas porque o país ingressa na nova onda econômica a toque de caixa e na condição de retardatário, mas também porque, sendo periférico, nunca conheceu algo semelhante ao Welfare State, que, bem ou mal, garantiu aos trabalhadores dos países centrais certas proteções sociais.
"Num primeiro momento, o efeito da globalização sobre o trabalhador no Brasil será reduzir a renda e diminuir ainda mais as proteções sociais", diz Dupas.
Diante deste quadro, o capitalismo globalizado vive paradoxalmente dias de glória. Ninguém em sã consciência se atreve a dizer que a crise do emprego poderia ressuscitar o fantasma do socialismo como alternativa histórica.
Analisando a fúria transformadora e, ao mesmo tempo, o potencial destruidor do momento atual, o economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, titular do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), não hesita em traçar um paralelo com as décadas de 20 e 30 deste século.
Vivia-se, diz ele, a mesma euforia dos dias que correm, característica das épocas em que as forças de mercado se sobrepõem à política e passam a atuar segundo seus desígnios. "O desígnio do capitalismo nunca foi criar emprego, mas produzir riqueza abstrata", lembra Belluzzo, parafraseando Karl Marx.
Belluzzo vê na ascensão do nazismo e na eclosão da Segunda Guerra uma resposta, irracional e regressiva, aos excessos do capitalismo das décadas anteriores. Na mesma linha, avalia que a reconstrução dos países no pós-guerra, sob forte intervenção estatal de inspiração keynesiana, tinha como objetivo maior restabelecer padrões civilizados de vida no planeta, o que implicava em garantir emprego e condições mínimas de vida à população de cada país.
"O que vem ocorrendo neste último quarto de século parece indicar que a era keynesiana, os anos dourados do crescimento capitalista, foi sucedida, desde o início dos anos 70, por turbulências e instabilidades que a história poderá revelar tão formidáveis quanto as que irromperam nas décadas de 20 e 30", sustenta Belluzzo.
O desemprego estrutural seria, neste contexto esboçado pelo economista, só a ponta de um iceberg que esconde dias muito piores.
Também drástico no diagnóstico e mais otimista nas conclusões o filósofo José Arthur Giannotti, presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) diz que "tudo parece indicar que o desenvolvimento tecnológico ganhou tal independência que o feitiço virou contra o feiticeiro. Para que essa alienação fosse suprimida seria preciso que a humanidade como um todo mudasse radicalmente seu modo de vida".
Mas enquanto essa radicalidade estiver fora dos nossos horizontes, prossegue Giannotti, "só nos resta abandonar as formas messiânicas de fazer política e voltar às modestas pretensões de uma política de tipo aristotélico, pois, ao contrário do que pensam os deserdados do absoluto, a política não desapareceu para dar lugar à mera administração das coisas".
O que ocorre, segundo o filósofo, "é uma substituição de uma forma de fazer política por outra, onde o intermediário necessário de toda negociação é o Estado, a medida do justo distributivo. Os excluídos do processo automático podem ser empregados em formas menos produtivas de trabalho se as forças de mercado forem politicamente controladas. Este é o desafio e não é menor do que aquele que pensou criar na face da terra um novo homem", conclui Giannotti.
Todo o enorme esforço dos intelectuais em compreender o que está acontecendo no mundo do trabalho confere uma atualidade surpreendente a um texto de 1983 escrito pelo sociólogo alemão Claus Offe, intitulado "Três Perspectivas para o Problema do Desemprego".
Escreve Offe: "As crises são sempre ambivalentes porque aumentam ou paralisam a capacidade de compreensão de um sistema. É difícil dizer se a crise contínua do mercado de trabalho ajudará a estimular a imaginação e a inventividade política ou se, pelo contrário, dará origem ao fatalismo e ao cinismo e relegará crescentes frações da classe trabalhadora a condições 'marginais' de subsistência".

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