São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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O frio, o calor e o fim dos tempos

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Mais 17 dias e, pronto: adeus, verão.
Já vai tarde.
Ufa! Foi o verão mais quente dos últimos tempos -e também o mais chuvoso, pegajoso e calamitoso. Foi, não, está sendo. E é bem possível que não se despeça no equinócio de março, pois o verão no Brasil, ao contrário do "Programa do Chacrinha", não costuma acabar quando termina. O que vale dizer que ainda teremos muito calor pela frente. E, provavelmente, novas borrascas.
Mais 17 dias e, pronto: adeus, inverno. No hemisfério norte.
Para os que lá vivem, ele também já vai tarde.
Brrr! Foi o inverno mais rigoroso e cruel dos últimos tempos. Tão rigoroso e cruel quanto o verão passado, o mais quente desde 1659. E o mais insuportável desde 1856, que foi quando os ingleses começaram a medir, sistematicamente, a temperatura da Terra.
O tempo pirou, em toda parte. E os metereologistas advertem: o calor e o frio vão aumentar nas próximas décadas. Nos dois hemisférios. De tal modo os extremos irão se confundir, que nem os mais doutos hermeneutas da Bíblia ousarão vaticinar de que maneira o mundo chegará ao fim, se ardendo em chamas, como receia a maioria, ou se devorado por mais um dilúvio, como suspeitam os que se aplicam a medir as águas que estão no mar e as que desabam do céu.
O aquecimento global não é mais uma ameaça ao futuro, é um fato do presente, precipitado pela contínua e desenfreada emissão de gases na atmosfera por canos de descarga, chaminés e aerossóis.
Se nada for feito, uma estufa nutrida a dióxido de carbono nos espera, com um séquito de flagelos apocalípticos: secas e nevascas intermináveis, extinção de inúmeras espécies de animais e vegetais, epidemias, furacões e maremotos. Imensas geleiras polares, derretidas pelo calor, farão subir o nível dos oceanos, sepultando ilhas e ameaçando a integridade física de todas as cidades costeiras.
Quando e se este cenário de ficção-científica tornar-se real, ninguém perderá seu tempo discutindo se o calor é melhor que o frio ou o verão mais prazeroso que o inverno. Iguais em volume de calamidades, serão temidos e amaldiçoados indistintamente.
Por enquanto é fácil preferir um ao outro ou, mesmo, apreciá-los indistintamente. Ainda há no calor e no frio virtudes consideráveis, que tendemos a valorizar e até a superestimar, quando não fazem parte do nosso cotidiano. Os habitantes de países frios cultivam fantasias com os trópicos, enquanto nós, tropicais, cultuamos a neve, mitificamos o Natal Branco e tudo mais que a literatura e o cinema também nos fizeram invejar.
Paul Fussell escreveu um livro inteiro ("Abroad") sobre o fascínio que os países ensolarados, e portanto mais quentes, exercem sobre os escritores ingleses desde o século passado. Houve época em que a nata da literatura britânica passava mais tempo tomando sol no Mediterrâneo, na África ou na América Latina, do que em frente a uma lareira na pluviosa Albion. Vários deles acabaram se cansando das mazelas tropicais e retornaram ao seu habitat original, onde, sem o risco de escaldar os miolos, aumentaram sua produtividade. Alguns voltaram para ficar, outros apenas trocaram de meridiano. Graham Greene e Burgess passaram seus últimos anos na Riviera.
No ensaio que escreveu para este caderno, John Updike (leia à pág. 5-4) reitera a teoria de que o frio estimula a atividade intelectual. Concordo, salientando que o frio em questão não é aquele sob o qual os esquimós e os lapônios labutam. O calor sempre me pareceu incompatível com os exercícios da mente. A filosofia ocidental não foi, e duvido que pudesse ter sido meditada debaixo de um calor de 40ø.
A partir de determinado grau, o calor desestimula, esmorece, nos torna preguiçosos e modorrentos, emburrece. Pior: pode até nos enlouquecer, como aconteceu com o Mersault de "O Estrangeiro", de Albert Camus, que, baratinado pelo sol africano, matou a tiros um jovem argelino.
Revela um estudo publicado na última edição da revista "Journal of Personality and Social Psychology" que os habitantes de países mais quentes são mais sensíveis e expressivos. Também são mais solidários, pois a vida ao ar livre, estimulada pelo clima quente, ampliaria o contato humano. Montesquieu já pensava assim, há mais de dois séculos. Mas nem ele nem a revista se referem a rincões tórridos, onde a vida ao ar livre é um suplício e uma fonte permanente de mau humor e misantropia.
Sexo é outra história. Não seria recomendável fazê-lo com os termômetros lá em cima, segundo o Cole Porter de "Too Darn Hot", mas embora eu também o prefira na temperatura em que se passa o conto que Richard Ford escreveu especialmente para este caderno (leia à pág. 5-6), devo admitir que o calor fala mais alto à libido. A velha canção de Frank Loesser, "Baby, It's Cold Outside", ilustra bem a questão: como está frio lá fora, o melhor a fazer é entrar para dentro de casa e, protegido pelo aquecimento, unir o yin ao yang.
O verão, sobretudo na versão senegalesca que nos aflige, talvez só sirva para aquilo que uma velha marcha carnavalesca chamava de rosetar. Até porque, no verão, as pessoas expõem mais os seus corpos, ficam mais bonitas e atraentes. E ainda têm o suor, tido e havido como afrodisíaco. Pairando acima de tudo isso, a suprema fonte de luz, energia e calor: o sol.
Confundido com o próprio Deus por vários povos primitivos, morada de Brama, centro do zodíaco, emblema de Vixenu e Buda, origem de Osíris, Apolo e Hélio, o sol é o astro-rei, a epifania uraniana, sinônimo de vida e alegria, metáfora de ressurreição (nascente) e morte (poente). Ele ilumina, aquece e vivifica. Mas também destrói, crestando o que a estiagem seca e o efeito estufa desidrata.
Os franceses apreciam tanto o calor que até se referem a ele no feminino: "la chaleur". Embora neutro em inglês, calor tem sexo, sim, senhor. E como tem! "Hot" não distingue só coisas, lugares e pessoas com a temperatura elevada. Nem apenas, figurativamente, um certo tipo de jazz e os meios de comunicação classificados por McLuhan (cinema e rádio são "quentes", televisão e telefone são "frios").
Estar "hot" também quer dizer estar com tesão e "heat" (calor) também se traduz por cio. Lawrence Kasdan explorou muito bem o binômio sexo-calor em "Corpos Ardentes" ("Body Heat"), talvez o primeiro filme "noir" a preferir ser "hot" em vez de "cool".
Em nossa língua, a palavra quente e correlatos também têm conotação erótica, mas sua flexibilidade lasciva é menos elástica que a de "hot". Quanto ao resto, seguimos a tradição dos idiomas ocidentais, reservando-lhe atributos mais benignos do que aqueles usualmente atribuídos ao frio. Quase sempre é positivo ser quente e negativo ser frio. Calor humano, frieza absoluta, dica quente, nota fria, recepção calorosa, tremenda fria.
Por mais que o calor, abrindo outra exceção, identifique o Inferno (e no de Dante, vale lembrar, os lugares mais quentes são reservados para aqueles que, nos momentos de grande crise moral, se mantiveram neutros), certamente não é frio o Paraíso. Imagina-se que suas verdejantes pastagens sejam bafejadas por um clima deliciosamente temperado, o mais justo, aliás, para os que lá são aceitos.
O Céu deveria ser primaveril: sol, 18ø C, clima seco, com alguma chuva de vez em quando, para variar, e neve nas montanhas. Dispenso o coral e as harpas.

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