São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Bob Wolfenson

ARNALDO JABOR

o lambe-lambe iluminado
O fotógrafo das capas Revista lança o livro "Jardim da Luz" e inaugura exposição no dia 12
Diante de mim, a câmera me olha. Quem sou eu? Quero saber e não quero ao mesmo tempo. O livro de Bob Wolfenson é mais que uma feira de vaidades; é uma feira de modéstias. No livro estão mestres na arte de iludir, artistas, faladores, escrevedores, chutadores, olheiros ocultando a fome de aparecer.
As pessoas neste livro parecem câmeras. É difícil fotografar gente; naturezas mortas são mais simples. As pessoas não param quietas. Mesmo ostentando calma, elas estão vivas, olhando o fotógrafo do fundo de suas órbitas, de onde o corpo vigia o mundo. Bob diz logo: "Sempre preferi sujeitos a objetos". Este é o problema central da filosofia. Sujeitos ou objetos?
Os fotografados nos olham. Isto cria mais problema, nos colocando no centro de um abismo. Viramos um palíndromo (olhem no dicionário), olhos olhando olhos. A palavra "olho" já é um palíndromo em qualquer língua: "Eye, l'oeil, ojo."
O que há de nós, neles? No caso desses sujeitos, todos querem ser objetos. Sempre há uma esperança no fotografado. Há o desejo de saber: "Quem sou eu?" Por isso, ficamos imóveis, objetais, puros.
Mas fica aquela luz dos olhos do modelo contra a luz da câmera, impedindo o foco perfeito. O fotografado tem a esperança de que, se for achado o ponto perfeito, a pineal total, talvez ele não morra. Alguns até fecham os olhos para facilitar: Jô Soares, Aguilar, Jorge Amado fecham os olhos para fazer mais fácil a tarefa do Bob. Se morrermos na foto, talvez não morramos na vida. O João Cabral também fecha os olhos. Só que ele fecha os olhos para não velar o filme, com sua luz mineral de praias nordestinas.
Há mortos no livro: Elis Regina, Leonilson, Lina Bo. Os mortos são melhores de fotografar. Não refletem mais nosso olhar. Parecem desviar os olhos, apagados. São mais fáceis de ver. Não nos ameaçam. Estão prontos, realizados.
Cezanne falou: "Eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim." Há em nós, sujeitos irrequietos, um desejo de sair da paisagem. Mas, como um elástico, somos puxados para baixo. Não escapamos dela. E a paisagem aparece em nossos rostos, varridas de tempo, nas falhas da arquitetura da maquiagem e da pose. E nós só aparecemos no intervalo, nas falhas da pose. Só aparecemos onde não estamos; aí, estamos.
Interessa o intervalo entre as sobrancelhas de Fernanda Montenegro, a ruga do sorriso obstinado; mais ainda, a luta da ruga pela alegria. A falha nos mostra. Em nossos fracassos, aparecemos. Mas, aí, não adianta mais; já éramos. Leonardo da Vinci: "O que se vê, antes, não era; e o que era, não é mais".
Nossos rostos foram feitos de fora para dentro, por mais que queiramos mostrar nossa independência. É assim: a paisagem quer se expressar como a água enchendo um copo e toma nossa forma. Nós somos o copo e, aos poucos, tudo transborda da nossa ilusão de continentes e viramos conteúdo. O continente é o mundo.
Eu, por exemplo. Estou no livro, e me preparei para a foto com a esperança da entrega. Quis ser "puro", entregar minha "verdade". Abri meu peito e me mostrei, com coragem e desamparo. Não adiantou. O lado do rosto, no canto da boca, pende com uma ruga de amargor e tempo. Não fui suficientemente honesto a ponto de enganar.
"Eu não sou eu nem o outro; sou qualquer coisa intermédio, pilar da ponte de tédio que vai de mim para o outro", disse Mario de Sá Carneiro. Alguns sabem disso. Alguns tiveram a sabedoria cênica de fazer teatro. Sabem que tudo é máscara, tudo é persona, que atrás de um rosto, há outro, feito cebola. Luis Melodia é um que sabe disso. Lindo, elegante, com roupas belíssimas, se recusou, malandro, a qualquer entrega. Pulou de banda, fez logo uma viagem, uma paisagem. Caetano também. Caetano virou câmera. Seu rosto se torce ao meio. Encara a objetiva. Um dos olhos vira diafragma; o outro se alteia como uma lente de aproximação, fotografando o Bob no trabalho.
Os fotografados variam. Uns querem ser documentário, outros ficção. Cada um mostra seu estilo literário nas contrações da face. Há barrocos, góticos. Arnaldo Antunes é gótico. Joãosinho Trinta, rococó. No fim das contas, ninguém fica satisfeito com as fotos. Nunca estamos em nossos melhores dias.
O Bob quer o quê, afinal? É bom feito o Avedon? Sim. Diz que não quer pegar a "alma". Pois sim... Vejam as "bandeiras" do Bob, agora que eu o fotografo. Primeiro, ele nos colocou num fundo neutro, como a nos isolar do mundo. Por quê?
Escolheu a pose dos sem pose. O enquadramento é frontal, honesto. Como todos nós, Bob quer pegar a flecha parada no vôo. Por que Bob não nos fotografou em cores? Porque ele quis o preto no branco, os pingos nos is. Ele diz não querer "essências". Impossível. Este o drama humano (ou brasileiro): querer alguma resposta.
E Bob Wolfenson consegue. Esta a grande vitória de Bob: o "real" está ali, fotografado. Só que não o vemos. Quando virmos o "real", não estaremos mais aqui.
Mas Bob quis também fotografar o país em contracampo. Por isso escolheu "olheiros". E mostrou, como num jardim de luz, os olhos que vêem o país. Se a câmera pudesse ir dentro das cabeças e revelasse as imagens que estão lá, teríamos um filme do nosso tempo. Mas este país está invisível. Só aparece, invertido, na geografia desenhada pelo tempo em nossos rostos. Como um relevo. Nas fotos de Bob, se olharmos bem perto, veremos o Brasil.

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