São Paulo, segunda-feira, 4 de março de 1996
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Blade Runner

JOÃO SAYAD

Escrevo um artigo totalmente financiado com capital de terceiros: peço emprestado ao ministro Ricupero as idéias cinematográficas e tomo emprestado a David Harvey ("A Condição da Pós-Modernidade", Edições Loyola, 1994) a interpretação e crítica que faz do filme "Blade Runner".
É natural que o artigo seja todo de empréstimo: o desemprego é assunto novo sobre um problema velho que emerge quando baixam os índices de inflação.
Dois fatos importantes ocupam nossa atenção. Primeiro, o acordo que a CUT acertou com o governo a respeito da reforma da Previdência.
Depois, o acordo entre empresários e metalúrgicos de São Paulo para que contratações de trabalhadores sejam possíveis fora das regras da CLT, isto é, abrindo mão de direitos em termos de multas, encargos trabalhistas e horas trabalhadas.
Não tenho dúvidas -ambos representam um recuo dos trabalhadores face à "modernização" da economia brasileira, o que não quer dizer que estejam errados.
A CUT se antecipou ao PT e resolveu ceder em vários itens da reforma da Previdência, aceitando que as aposentadorias sejam feitas em função do tempo de contribuição, ou seja, que as despesas da Previdência com aposentadorias estejam ligadas de alguma forma mais direta com as contribuições dos operários e empresas.
Um recuo tático e inteligente -representa muito menos do que os reformistas da Previdência pretendiam.
Os trabalhadores entregam alguma coisa -a aposentadoria só será concedida se existiu contribuição-, mas evitam uma reforma muito maior e mais dolorosa para si próprios. Uma estratégia inteligente para governo e trabalhadores.
O sonho de uma reforma chilena, com aposentadoria mais tardia e no regime de capitalização (a aposentadoria é financiada pelos recursos investidos pelos trabalhadores durante a sua vida útil) faz todo sentido do ponto de vista financeiro -é mais dinheiro "poupado", mais recursos para investimentos possíveis.
Mas não faz sentido sob qualquer outro ponto de vista -quando a população brasileira envelhece e as oportunidades de emprego se estreitam, o ideal seria se aposentar antes e trabalhar menos.
O problema evidentemente é que ninguém quer pagar por essa aposentadoria antecipada -o capital exige taxas de retorno elevadas se não foge para os Chiles do mundo, a mão-de-obra não pode ter seus custos elevados pela mesma razão.
A solução encontrada parece que tem a virtude do meio-termo e uma estratégia inteligente de pequenas vitórias face ao risco de uma grande derrota para o trabalhador.
No caso do acordo dos metalúrgicos, trata-se da aceitação de salários menores em troca de flexibilidade para contratar, demitir e distribuir horas trabalhadas de acordo com as necessidades da empresa.
Menos desemprego em troca de salários menores e horas trabalhadas flexíveis. O trabalhador urbano caminha no sentido dos bóias-frias. É uma perda para o trabalho. Não significa entretanto que seja a pior escolha.
Talvez seja menos doloroso salários menores e horas trabalhadas flexíveis do que o desemprego.
Estamos "libertando" os trabalhadores da rigidez da legislação trabalhista que os protege, como afirmou o professor José Pastore aqui na Folha em 28 de fevereiro e deixando que as coisas sejam determinadas pelo mercado como exige a economia pós-moderna de acumulação flexível.
Isso implica: sindicatos fracos, mão-de-obra utilizada de forma flexível, quando e se necessária, oferta pequena de postos de trabalho em empresas organizadas e um mundo de autônomos organizados sob a forma de pequenas empresas legais ou clandestinas, cooperativas, étnicas ou patriarcais.
Entramos numa nova era. Se você for otimista, pode pensar que estamos entrando no mundo do filme "Assédio Sexual".
Demi Moore é uma executiva linda e carreirista que tenta assediá-lo, você fala pela Internet o dia inteiro no seu escritório agradável e ecológico e mora em Seattle, no Estado de Washington, entre baías e florestas.
Se você for pessimista, vá assistir "Blade Runner". Os replicantes são trabalhadores criados por uma grande corporação de engenharia genética para trabalhos interplanetários que exigem excepcional força física. São feitos para durar apenas quatro anos e depois morrem.
Não existe CLT para seres replicantes, nem previdência privada ou pública, pois vivem apenas quatro anos.
Alguns deles se rebelam e querem sequestrar o proprietário da empresa de engenharia genética e conseguir uma vida mais longa. São caçados e assassinados pela polícia especializada em trabalhadores replicantes, os "blade runners".
Los Angeles, onde se passa a história, é uma cidade poluída, fustigada por chuvas ácidas, em que vive uma população de imigrantes da Ásia, América Latina e África.
A produção de olhos, cobras, corujas e outros produtos genéticos é "terceirizada" por uma infinidade de pequenas empresas, que vivem na ilegalidade ou pertencem a bandidos competentes para fazer produtos tão estranhos.
Los Angeles é uma cidade de pessoas isoladas, uma sociedade fragmentada. O mundo interplanetário é organizado e integrado em grandes corporações.
Os replicantes acabam conseguindo chegar ao capitalista proprietário da Tyrell, a corporação que inventou e produz esta mão-de-obra de curta duração. Matam dr. Tyrell, como num Édipo invertido em que o filho fura os olhos do pai.

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