São Paulo, quarta-feira, 6 de março de 1996
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A tortura, e a Justiça

GILBERTO MOLINA

Meu irmão foi assassinado após sessões de tortura em dependências policiais em São Paulo, em novembro de 1971, na véspera de completar 24 anos. Quase um ano depois a imprensa publicou uma pequena notícia sobre sua morte.
Era um período obscuro em que fora implantada a censura prévia e notícias deste teor eram impostas sem maiores investigações. Período trágico em que ocorreram cerca de 70% das mortes e desaparecimentos dos opositores do regime.
Com o passar dos anos as mentiras se evidenciaram, mas a verdade nunca nos foi apresentada. Flavio Carvalho Molina foi preso, identificado e morto no dia seguinte, tornando-se mais um breve protagonista de uma peça representada tantas vezes naquela temporada.
Os roteiros das histórias oficiais eram pouco imaginativos e variavam sempre entre tentativa de fuga, suicídio, confronto e pouca coisa mais. Mas o suficiente para atordoar a platéia durante anos.
Só mais tarde, quando tivemos certeza de sua morte, relatada por ex-companheiros, foi que pudemos ver por inteiro a tenebrosa face de um regime de força.
Encaminhamos em janeiro à Comissão Especial, constituída pela "Lei dos Desaparecidos", o dossiê de Flavio, com toda sua trajetória política, documentos oficiais comprobatórios, inclusive atestado de óbito resultante de processo judicial de 15 anos atrás. Na primeira reunião deliberativa seu nome foi acrescido à lista, que hoje possui mais 20 além dos 136 reconhecidos.
Temos em andamento uma ação ordinária de responsabilidade civil contra a União, que perdemos em primeira instância sob a argumentação de que ocorrera prescrição quinquenal. Ora, onde está a coerência se agora é promulgada uma Lei que me dá o que o outro me nega? Se Flavio não é considerado um desaparecido e possuímos um atestado de óbito, o que pretendemos ao recorrer à Comissão?
Pretendemos muito mais do que a indenização que a Lei faculta.
Pretendemos a identificação de seus restos mortais, que da vala clandestina de Perus foram transferidos para o laboratório de medicina legal da Unicamp, onde até hoje se encontram depositados em uma bandeja sob um manto de estranhos interesses promocionais.
Pretendemos que as circunstâncias reais de sua morte sejam divulgadas, pois a omissão da verdade se traduz em conivência com os responsáveis por um passado de crimes cometidos pelo poder.
Pretendemos conhecer os nomes dos torturadores e de seus mandantes para que a própria sociedade julgue seus atos. Pretendemos que este passado se mantenha vivo na mente dos jovens, fique registrado na história do país e seja matéria das aulas de História. Pretendemos apenas a justiça.

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