São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dos deuses ao ser supremo

MARIA DAS GRAÇAS DE SOUZA DO NASCIMENTO

Na época em que publicou "Deus e os Homens", Voltaire, conforme diz em sua correspondência, estava possuído por um "furor de imprimir". Entre 1765 e 1770, contam-se aproximadamente umas 50 obras publicadas pelo editor Cramer, que Voltaire havia aliás instalado em seu domínio de Tourney, próximo de sua própria casa, não se sabe se gratuitamente ou não, a fim de tê-lo constantemente ao seu alcance.
O dilúvio de textos é bastante heterogêneo, constituído de contos, cartas morais, escritos sobre a história, réplicas contra adversários, crítica da Bíblia, diálogos filosóficos. Contudo, trata-se de uma produção claramente marcada pelo interesse quase obsessivo em reconstituir a história das religiões de um ponto de vista absolutamente leigo, que pudesse retirar da tradição cristã o privilégio de que gozava, desde a teologia da história agostiniana, de ser capaz por ela mesma de fundar o sentido da história da humanidade. Tal tarefa exigia, em primeiro lugar, a crítica da historicidade da Bíblia e a consideração da trajetória do povo judeu e do cristianismo como uma história da mesma natureza que qualquer outra história dos povos da Antiguidade.
São deste período as "Questões de Zapata", panfleto no qual Voltaire, na figura de um fictício teólogo espanhol, se compraz em assinalar ironicamente as dificuldades que devem ser enfrentadas por quem quiser tomar os fatos bíblicos como verdadeiramente históricos. Pertencem também à mesma época o "Exame de Milord Bolingbrook ou o Túmulo do Fanatismo", um paciente exame de passagens do Antigo e do Novo Testamentos do ponto de vista do historiador racionalista. O "Dicionário Filosófico", que em 1767 é reeditado pela sexta vez, na maioria dos verbetes tem em vista a crítica da tradição judaico-cristã. Enfim, a "Filosofia da História", que inaugura o uso desta expressão, e que mais tarde será incorporado como introdução às edições posteriores do "Ensaio sobre os Costumes", e a "Defesa de Meu Tio", que responde às críticas feitas pelo erudito Larcher contra a historiografia voltairiana no que diz respeito aos povos antigos, se apresentam como ensaios sobre as culturas da Antiguidade.
Quando inicia sua carreira de historiador, Voltaire se interessa particularmente pela história moderna. Henrique 4º, da França, Pedro, o Grande, da Rússia, Carlos 12, da Suécia, e finalmente Luís 14 são personagens que representam o esforço das nações européias para enfim saírem das trevas da ignorância na qual estiveram mergulhadas durante séculos. Eles são personagens civilizadoras. O desprezo de Voltaire pelos tempos antigos é conhecido. Em suas "Observações sobre a História", afirma que, se tivesse de aconselhar um jovem que quisesse se iniciar no estudo da história, recomendaria que começasse pelos tempos modernos. Os tempos antigos são de pouco interesse. Os povos da Antiguidade eram bárbaros supersticiosos, e quase não têm o que nos ensinar. Esta desvalorização do passado está vinculada à idéia de progresso que atravessa a filosofia da história voltairiana. Um dos componentes desta idéia é, evidentemente, a afirmação da superioridade do presente.
Por que então, a partir destes anos 60, Voltaire se volta para a Antiguidade? A resposta ele mesmo nos dá numa de suas cartas: "Creio que o melhor método de cair sobre a infame é o de parecer não ter nenhuma vontade de atacá-la, de desembaralhar um pouco o caos da Antiguidade, de tentar criar certo interesse por ela, de difundir certo agrado pela história antiga, para mostrar o quanto nos enganaram em tudo, quão moderno é aquilo que nos fizeram acreditar que era antigo, quão ridículo é o que nos foi apresentado como respeitável, e deixar o leitor tirar por si mesmo as consequências".
De fato, não se poderia esperar outra coisa. O interesse de Voltaire pelas civilizações antigas é uma das estratégias para desmascarar a "infame", já que o passado remoto é um terreno no qual se supõe que a superstição e a ignorância tinham maior império sobre os homens.
Em "Deus e os Homens", a intenção manifesta do autor é a de reconstituir a origem das religiões nos primórdios da humanidade e mostrar que por trás da diversidade das religiões instituídas há um fundo comum que é a crença numa divindade superior que remunera a virtude e pune o vício. Assim definido, o objetivo da obra revela um dos traços mais característicos do pensamento voltairiano sobre a questão da religião. A crença num ser supremo é natural e útil, e "a mesma força de nosso entendimento que nos fez conhecer a aritmética, a geometria, a astronomia, que nos fez inventar as leis, também nos fez conhecer a Deus" (pág. 9). Mas não é necessária nenhuma revelação para chegar a esta verdade. E, mais do que isto, continua Voltaire, se alguns charlatães me enganam, se querem que eu acredite que as estrelas guiam meu destino e "ordenam-me que lhes dê meus bens em nome de Deus, então eu declaro que são todos uns velhacos e procuro orientar-me por conta própria, com a pouca razão que Deus me deu" (pág. 9).
Nessa perspectiva, já se anuncia no livro o que será nos anos 70 a dupla batalha de Voltaire contra o fanatismo religioso e contra o ateísmo. O espaço dedicado por Voltaire à história do povo bíblico, os exemplos escolhidos e a inigualável ironia do autor permitem-nos identificar esta obra como mais um instrumento voltairiano contra o fanatismo religioso sobretudo nas formas que assume na tradição judaico-cristã.
Um dos procedimentos mais utilizados aqui é a análise comparativa das religiões antigas, e que consiste em assinalar o conteúdo comum das diversas seitas. Esta análise mostra que a religião judaica não apenas se funda, como as outras da Antiguidade, em prodígios narrados de geração em geração, mas também que as crenças dos judeus eram "um amontoado confuso e contraditório de ritos de seus vizinhos. Eles tomam o nome de Deus emprestado dos fenícios, tomam os anjos dos persas, têm a arca errante dos árabes, adotam o batismo dos indianos, a circuncisão dos sacerdotes do Egito" (pág. 62). Em princípio, portanto, não há razão maior para crer em seus relatos do que para crer nos relatos de outros povos pagãos.
O tratamento dado ao cristianismo não difere daquele dado ao judaísmo. Jesus é perfeitamente comparável a Maomé. Nascido do povo, fez-se passar por profeta. Foi seguido por discípulos exaltados. Provavelmente pregou uma moral sadia, mas o pior é que "tornou-se o pretexto de nossas doutrinas fantásticas, de nossas perseguições, de nossos crimes religiosos" (pág. 122).
"Deus e os Homens" retoma, enfim, a explanação da trajetória que estava já definida na "Filosofia da História", quatro anos antes. O homem primitivo tinha necessariamente uma religião. Progressivamente, tornando-se capaz de um grau maior de abstração, ele concebe os deuses tribais. Os deuses aos quais a Bíblia se refere, Adonai, Baal etc., são o resultado deste processo. Nesta fase, como atestam as passagens da escritura, o Deus dos judeus convive com os deuses das outras tribos.
O estágio seguinte, que coincide com o desenvolvimento do comércio entre as comunidades, caracteriza-se pela absorção recíproca dos deuses tribais pelos diversos grupos e corresponderia à religião dos gregos e romanos. Já nesta época, entre os homens mais cultos, como Cícero, surge a noção de um Deus único. Em outras palavras, o processo de purificação das religiões deve culminar com o culto do ser supremo, que é um fruto tardio da razão.
Em suma, a história das religiões é o relato que vai das religiões primitivas até a religião racionalmente inteligível. Nesta perspectiva, os cultos primitivos, e neles estão incluídos os cultos cristãos, são fruto da ignorância e da tolice dos homens. Aliás, para Voltaire, seria absolutamente insensato procurar um sentido para estas fábulas que considera absurdas, e querer entrever a razão na loucura.
Este modo de conceber a tradição mitológica e religiosa antiga é um dos traços constitutivos da filosofia da história voltairiana, que considera o percurso da história dos homens como uma trajetória linear em direção à civilização, trajetória sujeita a interrupções e mesmo recaídas, condicionada à ação político-pedagógica de homens ilustrados para acelerar o progresso da razão.
É claro que estamos diante de uma concepção muito distante daquela da "Ciência Nova", de Vico, tão fértil do ponto de vista da reflexão antropológica e que atribui à mitologia e à religião dos povos primitivos uma função fundamental de integração entre os indivíduos e as instituições sociais. A reflexão de Voltaire situa-se num outro registro. Para ele, a história é o relato dos delírios dos homens, e descrevê-la como tal é dever do filósofo, cuja tarefa é a de adverti-los para os efeitos de seus furores, os quais, diga-se de passagem, estão longe de ter desaparecido.

Texto Anterior: Entre democracia e liberalismo
Próximo Texto: Vertigem wagneriana
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.