São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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O arauto da complementaridade

OSVALDO PESSOA JR.

Esquiando na Noruega no início de 1927, o físico dinamarquês Niels Bohr -já famoso por ter proposto um importante modelo para o átomo em 1913- desenvolveu a concepção que o marcaria para o resto de sua vida: a complementaridade. Esta idéia é o tema principal da coletânea de artigos de divulgação (a segunda de uma trilogia) escritos por Bohr no período 1932-57, traduzida dentro da louvável série de clássicos da história da ciência editada pela Contraponto, no Rio de Janeiro.
A idéia da complementaridade surgiu dos esforços efetuados por Bohr para interpretar a nova teoria atômica que se cristalizava na época, a chamada mecânica quântica. Havia-se descoberto que, no nível atômico, a matéria apresenta uma certa dualidade, podendo comportar-se como partícula (seguindo trajetórias bem definidas) ou como onda (espalhando-se e interferindo consigo mesma). O que Bohr fez foi elucidar a natureza dessa dualidade, fundamentando-a nas limitações do ato de observação de corpos microscópicos.
Segundo ele, um objeto quântico, como um átomo, não pode ser inteiramente compreendido dentro de um "quadro único", mas necessita de descrições mutuamente excludentes, como "onda" ou "partícula", que juntas se complementam para descrever o objeto. Digamos que, em um certo experimento, um objeto se propaga como partícula; este mesmo objeto poderá também se propagar como onda, mas isso só pode acontecer (e eis uma tese empírica) se a aparelhagem experimental for adequadamente modificada. Segundo Bohr, estamos presos à linguagem da física clássica, que descreve tais procedimentos experimentais (incluindo termos como "onda" e "partícula"). E essa linguagem clássica é insuficiente para descrever objetos quânticos dentro de um quadro único.
Na mesma época, também em Copenhague, o jovem alemão Werner Heisenberg desenvolveu sua própria concepção sobre os problemas da microfísica, com o famoso princípio da incerteza. A conciliação dessas duas abordagens levou ao estabelecimento da interpretação "ortodoxa" (ou de Copenhague) da física quântica.
Existe assim, em primeiro lugar, a complementaridade entre onda e partícula, enfatizada por Bohr, que une duas concepções contraditórias na física clássica. Heisenberg, porém, ateve-se apenas ao quadro corpuscular, e considerou que o aparelho de medição exerce sempre um distúrbio incontrolável sobre o objeto quântico (o que para Bohr expressava a "individualidade" ou descontinuidade essencial dos processos quânticos). Isso levou ao princípio de incerteza, que afirma que grandezas que na física clássica coexistem para uma mesma partícula, como posição e velocidade, passam a ser incompatíveis na mecânica quântica. Estabelece-se assim uma complementaridade de tipo diferente daquele existente entre onda e partícula, de caráter menos geral, entre o que Bohr chamava de descrição espaço-temporal e leis de conservação dinâmica.
O sucesso da interpretação ortodoxa estimulou Bohr a estender a noção de complementaridade para outros campos do conhecimento. O primeiro artigo do livro, "Luz e Vida", redigido em 1932, apresenta justamente a extensão da tese da complementaridade para a biologia. Segundo Bohr, se tentarmos analisar em detalhes a dinâmica das moléculas em um ser vivo, este necessariamente deixará de viver. Haveria assim uma complementaridade entre a análise física de seres vivos e a própria vida, e disso resultaria uma complementaridade entre mecanicismo e vitalismo. Esta tese é repetida com variações em todos os artigos da coletânea, mas em 1962, em sua última conferência, "Luz e Vida Revisitado" (publicada em outro volume), Bohr abandonaria a idéia de que o estudo dos mecanismos físico-químicos de um ser vivo necessariamente levaria este à morte.
A extensão mais pertinente do princípio de complementaridade seria para a psicologia, inspirada no provérbio segundo o qual se tentarmos analisar nossas emoções, dificilmente continuaremos a possuí-las. Postulou assim uma complementaridade entre introspecção consciente (pensamento) e emoções (sentimento), que se aproximava de teses expostas pelo psicólogo norte-americano William James no final do século 19. Bohr teria lido James em sua juventude, além de ter contato com suas idéias por meio do filósofo dinamarquês Harald Hffding, amigo de seu pai, que teria também incutido no jovem Bohr grande simpatia pela filosofia existencialista de Sren Kierkegaard.
Extensões do princípio de complementaridade também foram feitas para a linguagem (complementaridade entre o uso prático de uma palavra e sua definição estrita, pág. 65), a ética (complementaridade entre justiça e compaixão, pág. 103) etc. No entanto, as incursões de Bohr nas áreas humanísticas não ultrapassaram o nível das generalidades, como se vê nos artigos "Filosofia Natural e Culturas Humanas" (1938), dirigido aos antropólogos, e "A Unidade do Conhecimento" (1954). De modo geral, os sete artigos do livro se repetem, resumindo as teses principais da interpretação ortodoxa da física quântica (de maneira não muito transparente para leigos) e sugerindo extensões da complementaridade para outras áreas.
O que torna o livro presença obrigatória na estante de qualquer um interessado em história e filosofia da física é o artigo clássico "O Debate com Einstein sobre Problemas Epistemológicos na Física Atômica", escrito em 1949, que relata as discussões dos dois gigantes da física teórica de nosso século, travadas ao longo de uma década. Nas conferências de Solvay de 1927 e 1930, Albert Einstein forneceu alguns "experimentos de pensamento" para tentar violar o princípio de incerteza, mas Bohr conseguiu mostrar os erros destas propostas. Em 1935, porém, Einstein, Podolsky e Rosen (EPR) lançaram um desafio que obrigou Bohr a rever sua interpretação, levando-o a definir o "fenômeno" quântico como a totalidade do objeto e do aparelho de medição. O desafio lançado por EPR é ainda muito debatido hoje em dia.
A tradução, com revisão técnica de Ildeu de Castro Moreira, é muito boa, apresentando apenas deslizes ocasionais que não comprometem a compreensão dos textos, salvo na pág. 9, em que se deve substituir "não" por "agora" (linha 7) e "e" por "ou" (linha 12). O leitor que quiser ler um único artigo, afora o mencionado clássico, pode ir direto para "Os Átomos e o Conhecimento Humano" (1955), que repete os outros artigos de maneira especialmente concisa e brilhante.
A interpretação ortodoxa ainda é a mais aceita entre os físicos, apesar de haver crescente competição por parte de outras interpretações. Isso coloca as teses de Bohr na ordem do dia, valorizando o lançamento da tradução. Como exemplo da discussão que se trava atualmente, pode-se mencionar a descrição (a partir de 1979) de fenômenos "intermediários" entre onda e partícula, o que alguns consideraram um desafio à interpretação ortodoxa. No entanto, a existência de tais fenômenos não afeta o cerne das teses desenvolvidas por Bohr, pois tais fenômenos também se apresentam em pares complementares e mutuamente excludentes.
Entre os filósofos da ciência, discute-se muito se Bohr, que em várias passagens apresenta a teoria quântica como um mero instrumento para descrever observações (colocando-se na tradição positivista), seria no fundo um realista, concebendo uma realidade por trás das observações passível de descrição. O leitor poderá investigar esta questão por conta própria no presente volume, mas vale salientar uma solução ao problema que certamente agradaria a Bohr: ele seria um "realista instrumentalista", bem no espírito yin-yang da complementaridade!

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