São Paulo, sábado, 9 de março de 1996
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O anjo exterminador

RUBENS RICUPERO

O desemprego acaba de fazer sua última vítima: o governo de Felipe González na Espanha.
É claro que outras causas concorreram para a derrota eleitoral; dentre elas, o desgaste inevitável de quase 14 anos de poder.
É difícil negar, contudo, que esse desenlace tenha muito a ver com uma taxa de desemprego quase incompreensível (23% da força de trabalho), chegando a mais de 35% no grupo de jovens até 25 anos.
Depois do ocorrido na França de Mitterrand, é a segunda vez em poucos anos que um governo socialista europeu se vê castigado pelos eleitores por não ter conseguido lidar com a desocupação.
Não deixa de ser irônico que os partidos socialistas francês e espanhol tivessem sido apontados até recentemente como exemplos de encarnação mais pragmática e menos doutrinária da social-democracia.
Aberta aos conselhos do neoliberalismo, a nova onda do socialismo parecia capaz de conciliar sindicatos com inflação baixa e interesses da indústria.
Foi assim que se viu na França o paradoxo dos socialistas, antigos espantalhos das Bolsas e do capital no tempo do "Front Populaire" dos anos 30, convertidos nos mais intransigentes defensores do "franco forte", da redução da inflação a níveis inferiores aos da Alemanha, em nome da obediência aos critérios macroeconômicos de Maastricht para adoção da moeda única.
O inconveniente de tudo isso é que a bandeira da luta contra o desemprego foi confiscada pelos conservadores, que, após ganharem com ela as duas últimas eleições, tentam agora pôr em prática políticas ativas de emprego.
As últimas estatísticas estão longe de permitir uma conclusão definitiva. Se é certo que houve pequena redução no desemprego de longa duração (mais de um ano) e no dos jovens, em compensação, a taxa geral chegou a 11,8%.
O pior é que, apesar das medidas destinadas a gerar empregos -o contrato iniciativa-emprego, as reduções de encargos sociais e fiscais, o estímulo ao tempo parcial- apenas 4% dos empresários estariam dispostos a contratar mais trabalhadores por causa das ajudas concedidas pelo governo.
Agora toca a vez dos conservadores espanhóis de demonstrar que são, de fato, mais competentes para enfrentar o desemprego e melhorar a economia, conforme convenceram o eleitorado.
Em janeiro de 1985, quando Tancredo Neves visitou a Espanha, antes de sua posse que nunca haveria, perguntou a Felipe González qual era o segredo do seu êxito.
Estávamos ainda no período de lua-de-mel do socialista espanhol, e este lhe respondeu com o conselho que havia recebido de Olof Palme: "Escolha um bom ministro de Economia e 80% dos seus problemas estarão resolvidos".
Pelo jeito, não foi suficiente.
É preciso admitir, porém, que o desemprego, nova versão do anjo exterminador, não poupa ninguém, ao contrário do anjo do Senhor, que aniquilava os egípcios, mas não tocava nos filhos de Israel.
Desta vez não escapam nem os pragmáticos japoneses, que hoje sofrem de uma taxa sem precedentes de 3,4%, nem a conservadora e ortodoxa Alemanha, com seus mais de 4 milhões de desempregados, nem o trabalhismo da Austrália, que, um dia antes dos socialistas espanhóis, perdeu um poder exercido por 13 anos, derrotado por uma taxa de desemprego de 8%.
Não surpreende, assim, que se busquem bodes expiatórios com o aumento das exportações de manufaturados dos países em desenvolvimento ou as mudanças tecnológicas.
Acontece, porém, que em períodos anteriores já se haviam registrado aumentos comparáveis da competição comercial de países emergentes -na época, a Itália e o Japão- sem que isso tivesse provocado desemprego em massa nos mercados importadores.
Por exemplo, nos dez anos decorridos entre 1960 e 1970, a penetração das importações italianas nos mercados dos então cinco outros membros da Comunidade Européia passou de 0,4% a 2,4%.
Essas cifras são mais ou menos equivalentes às da penetração das importações dos países em desenvolvimento no mercado muito maior da CEE expandida e no dobro do tempo, nos 20 anos entre 1970 e 1990.
Como explicar que agora esses mercados experimentem ampliação do desemprego, pelo qual em parte responsabilizam as importações, quando, 30 anos atrás, vários desses países europeus sofreram escassez tão aguda de mão-de-obra não-especializada que foram forçados a recorrer à imigração em larga escala, inclusive da própria Itália?
O mesmo ocorre com a explicação tecnológica. É verdade que a revolução da informática e das telecomunicações acarretou grandes deslocamentos de emprego.
Mas não é menos verdade que, a partir de 1950, a revolução tecnológica comparável no setor dos transportes e na televisão, como resultado das inovações desenvolvidas durante a guerra, não teve o mesmo efeito destruidor de empregos.
Aliás, o argumento tecnológico apresenta outros problemas.
Segundo ele, a demanda por trabalhadores não-especializados deveria, em tese, diminuir nos países de vanguarda tecnológica, enquanto a procura por profissionais especializados se expandiria.
Sucede, todavia, que também esse segundo tipo de demanda tem sido fraca. Assim, o desemprego de pessoas com educação superior ou secundária alta evoluiu, nos EUA, de 2,1% (1970) a 3,9% (1989); saltou, na Alemanha, de 1,8% (1978) a 5,0% (1987) e na França, de 2,6% (1979) a 4,1% (1990).
Por que essa diferença, em períodos distintos, do impacto sobre o desemprego da penetração das importações e das mudanças tecnológicas?
A razão é simples: nas fases anteriores, o crescimento satisfatório da produção e dos investimentos criava oportunidades para reempregar com salários remunerativos, em outros setores da economia, os trabalhadores deslocados pelas importações ou pela tecnologia, o que não está acontecendo hoje.
Como diz um recente estudo da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento), enquanto os governos continuarem a impedir a economia de crescer a mais do que 2,5% ao ano, as empresas se limitarão a aumentar capacidade nessa mesma proporção, preferindo elevar marginalmente a produção pelo recurso exclusivo aos ganhos de produtividade, agravando, portanto, o desemprego.
A solução em profundidade para o problema só pode vir de uma aceleração do crescimento a taxas satisfatórias, mas sustentáveis, embora seja também útil recorrer a medidas como a flexibilização do mercado de trabalho ou o retreinamento.
Para acelerar o crescimento, porém, não basta querer. É preciso poder e isso significa completar o ajuste estrutural, eliminar o déficit orçamentário, desestatizar, elevar a poupança. Sem essas soluções, tudo o mais é paliativo.

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