São Paulo, domingo, 10 de março de 1996
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O Verbo visível

AIDA RAMEZÁ HANANIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando se quer identificar as peculiaridades da arte para além da adoção de traços ou do amalgamento de traços adquiridos pelos caminhos trilhados pela civilização árabe, constata-se, de imediato, que, ao contrário da arte ocidental, fundada na poli-idealização, a árabe revela-se essencialista, expressando-se por uma forma decorativa não-figurativa, alicerçada fortemente na caligrafia do pensamento alcorânico.
A civilização árabe, tendo se constituído e desenvolvido sob a égide do Islã, foi uma das maiores civilizações da escrita que o mundo conheceu. Na verdade, a palavra contida no Alcorão, escrita, ouvida e recitada -o Alcorão é não só a Leitura, mas também o Dhikr (1) por excelência- é para o árabe, fundamento de vida.
O Alcorão, palavra incriada e eterna de Deus, texto maior do muçulmano, é considerado, assim, o Signo-fonte que manterá com todas as outras escrituras determinadas pela cultura que embasa, um elo orgânico. A escrita e sobretudo a caligrafia árabe, uma das formas mais proeminentes de inserção do signo na realidade e na memória dos homens, pois fixa a língua que se tornou o veículo da Revelação.
Se o pensamento alcorânico é total e sua língua, perfeita, é porque se trata do Verbo do Altíssimo que desceu à Terra. Verbo que se fez escrita. Escrita que se materializou na Caligrafia. Caligrafia que representa o corpo visível da divina palavra. Para o muçulmano, o nome sagrado de Deus e o Alcorão equivalem à Encarnação para o cristão: o mesmo senso de devoção que o cristão nutre por Jesus (Verbo Encarnado) é o que o muçulmano nutre pela escrita da palavra divina e pelo Alcorão que a acolhe.
Para o cristianismo, haverá sensivelmente uma gradação na conceituação da imagem: não se deve adorar, mas reverenciar a imagem da Virgem, de Jesus e dos Santos. Para o cristão oriental, as regras de preservação da sacralidade são mais rígidas e o temor da idolatria, ainda maior, o que exclui a tridimensionalidade da imagem talhada, a estátua esculpida, admitindo-se apenas os ícones, estes, sim, podendo ser respeitados, por serem apenas imagens pintadas em superfícies planas. E, para o protestante, o aniconismo é marcante em todos os momentos do exercício da fé.
Construída sobre o credo monoteísta que impede a pesquisa e experimentação de vários modelos, a arte muçulmana levou a extremos a reserva quanto à imagem, quase negando a arte figurativa, ao menos vendo-a com precaução e desprezo, o que, de certa maneira, já estava prescrito nas grandes religiões monoteístas anteriores (2).
O iconoclasmo muçulmano aproxima-se do bizantino, participando também da resistência do protestantismo à reprodução e, em certo sentido, é o herdeiro do lastro iconoclasta dos antigos semitas.
Se nos reportarmos ao texto alcorânico, porém, veremos que nele não há interdição clara da imagem ou da arte em geral. É evidente, entretanto, a condenação na direção da idolatria, uma vez que "será proscrito todo objeto de arte que se torne cultuado".
Já nos hadiths (3), verifica-se que em suas declarações, está contida a hostilidade à arte em geral e, de modo especial, à figurativa. Verifica-se, ainda, que a condenação surge com maior veemência contra o artista do que contra a sua obra, conforme um de seus mais reconhecidos aforismos "os artistas que fazem imagem serão punidos no Dia do Juízo por um julgamento de Deus que lhes determinará a impossível tarefa de ressuscitar suas obras".
Outra razão implícita da condenação do artista e da imagem que produz, escuda-se no fato de que a mensagem teológica central do Alcorão consiste em afirmar a unicidade e o total poder de Deus. A relação dos Atributos de Deus (Asma 'Allah al Husna) mostra que um de Seus qualificativos é Al-Mussawwir (o criador de formas) (4), o mesmo termo utilizado para pintor. A partir daí, todo artista seria um rival de Deus no exercício de Suas atribuições principais.
A amplitude da questão da imagem convocou figuras eminentes do mundo islâmico ao longo dos tempos. Dentre elas, a de Algazali, em sua obra "Ihya' Ulum Al-Din" (Vivificação das Ciências da Religião) em que, ao enumerar o cortejo de vícios que acompanha os banhos bizantinos, situa, em primeiro lugar, os "afrescos representando seres humanos e animais", não tolerando senão "os que representam árvores, isto é, seres inanimados" (5).
Na verdade, seres inanimados, figuração de animais e até de seres humanos acabarão por integrar o universo árabe-islâmico, a partir já de meados do século 8º.
Algumas considerações impõem-se aqui, que permitam esclarecer o aparente paradoxo.
A reflexão sobre a arte (como, de resto, sobre qualquer segmento da Cultura Árabe) deve tomar em conta o conjunto de fatores e relações estabelecidas a partir do encontro dos muçulmanos com outros povos, no formidável processo de expansão que o Islã conheceu.
Tendo início, nos albores do século 7º, a formação da almejada "nação árabe" ('umma) (6) adquiriu seus contornos maiores com a chegada dos muçulmanos à Península Ibérica em 711.
O grau de islamização de cada região, país ou grupo social foi extremamente diversificado, não só porque o momento histórico em que ocorreu era outro, mas -e sobretudo- em virtude do maior ou menor arraigamento das populações conquistadas a seus valores originais; populações detentoras, muitas vezes, de ricos patrimônios artísticos e tradições plásticas. Para exemplo, tomemos a Pérsia, à época da arabização, região das mais florescentes sob todos os aspectos, que manteve com a incorporação dos valores árabes e islâmicos, muita autonomia na condução de seu desenvolvimento cultural. Pelas mesmas razões, foi análogo o caso da antiga Síria, acrescendo-se o fato de que parte de sua população resistiu à islamização, chegando a preservar um importante núcleo cristão no Oriente Médio e grande liberdade na determinação de seu perfil cultural.
A Civilização Árabe não uniformizou totalmente os povos convertidos. A tolerância dos conquistadores (registrada pelos historiadores mais divergentes entre si) permitiu o exercício dos diversos particularismos dos conquistados, ao mesmo tempo em que os engajou na perspectiva universalista do projeto da Nação Árabe.
Abalançando-se entre o geral e o particular, o comum e o específico, os árabes nunca perderam de vista o objetivo maior, a consolidação da entidade unitária representada pela 'Umma. À medida que o Islã se expandia, que, cada vez mais, se distanciava do ambiente idólatra que o antecedera; que se intensificava o contato com a arte dos conquistados, foi se alterando a ordem inicial do iconoclasmo e do aniconismo muçulmanos. Nesse sentido, são acentuadas as influências bizantina e sassânida.
Sob a dinastia dos omíadas (660 a 750), com capital em Damasco, na Síria, o desenvolvimento artístico árabe efetuou-se muito próximo do mundo helenístico e da cultura bizantina. Surgiram, entre os árabes, nessa época, as primeiras reproduções de realidades inanimadas como árvores, flores, conjuntos arquitetônicos... Além do mais, artistas bizantinos foram solicitados -em virtude do brilho e da superioridade técnica, digamos assim, que os muçulmanos também lhes ofereciam- a colaborar na construção e decoração das grandes mesquitas omíadas do Oriente.
O período subsequente (750-1258) tem início com a tomada do poder pelos abássidas, que transferiram a capital do império para Bagdá, de domínio persa. Foi, sem dúvida, o período que aglutinou um maior número de convertidos não-árabes e foi, justamente por isso, o período que mais propiciou a incorporação de valores específicos dos grupos assimilados.
Lentamente, tomou lugar a representação de seres vivos: animais, de início, e mais tarde, esparsamente, a figura humana, localizando-se a primeira, ainda em meados do século 8º, nas paredes do Qusayr Amrah, edificação das estepes desérticas da Transjordânia.
Merecem citação também, as pinturas de Samara no Iraque e o manuscrito ilustrado do Kita-bal-Aghâni (7) de Abu al-Faraj al-Ispahâni, entre outros exemplos.
Por volta do século 13, fruto de diversos aportes e da devida assimilação dos mesmos, os árabes muçulmanos chegam a uma manifestação artística bastante autêntica, propondo um estilo próprio que se concretiza na chamada Arte do Livro. Esta compreende a iluminura, processo consagrado pela ornamentação das páginas e das capas do Alcorão, sobretudo frontispícios e posfácios com motivos decorativos, sem figuração alguma, bastante complexos pelo ritmo e pelo nível de entrelaçamento de motivos decorativos. Há o uso abusivo da douração, o que acentua o caráter sagrado do texto alcorânico e torna a página mais luminosa; daí o termo que a caracteriza -iluminura. A Arte do Livro compreende também a ilustração de manuscritos, por meio da miniatura de imagens.
A miniatura será a mais notável arte figurativa árabe. Seu apogeu coincide com o apogeu da Civilização Árabe e seu declínio acompanha a trajetória dos árabes, a partir da chegada dos mongóis a seus domínios (1258).
A fascinação destas pinturas de acentuada influência persa (mais frequente entre os xiitas que entre os sunitas), reside no poder de evocar -detalhando-os- aspectos contemporâneos da vida árabe, seja um povoado, uma caravana, uma procissão de peregrinos, uma barcaça no Eufrates, ou um navio no Golfo Pérsico ... Portanto, além da beleza plástica, encerram um valor adicional: têm um caráter documental do modus vivendi da época, incomparável.
Ao analisar as múltiplas influências culturais incidentes particularmente na arte árabe, verifica-se que a supremacia persa é incontestável. Entretanto, é de suma relevância a influência generalizada pelo Império Árabe (seja no Oriente, seja no Ocidente), de uma visão cristã pela iconografia de povos evangelizados.
Muito embora tenha se realizado, a conquista da arte figurativa e seu consequente desenvolvimento até o presente, entre os árabes muçulmanos, nunca teve um percurso tranquilo, ainda que se verificasse sempre no âmbito do profano. Suscitou sempre acirradas polêmicas e acaloradas discussões acerca de interpretações dogmáticas de base.
Houve, evidentemente, níveis diferentes de aceitação e de restrição à imagem ao longo do tempo: a região da Pérsia, por exemplo, mostrou-se mais liberal que as regiões de substrato semítico; houve uma atitude marcadamente moralizadora nos primeiros tempos do Islã, com vistas a extirpar de seu universo a idolatria, contrastando com a abertura maior do século 12. E -retomando Grabar- "a heterodoxia xiita mostrou-se mais permissiva que a ortodoxia sunita" (8). Contudo, pairou sempre sobre a mão do artista -ainda que de modo não canonicamente explícito- certo desprezo pela imagem.
Uma análise porém, ainda que superficialmente, do âmbito da arte dá-nos a certeza de que há uma unanimidade, uma horizontalidade que atravessa a globalidade árabe: a importância do signo, da escrita, como o veículo máximo da simbologia islâmica.
1. O dhikr é, antes de mais nada, a repetição, admitindo também os sentidos de lembrança e até de estudo.
2. Já no Velho Testamento (ex. 20:4), encontra-se o temor da figuração dentre outros grupos, notadamente semíticos: "Não farás imagem talhada, nem qualquer representação das coisas que estão no céu e na terra ou nas águas sob a terra".
3. Hadiths, entre nós, tradições, são compilações que se referem à conduta e à fala do Profeta Muhámmad. São fontes religiosas, embora sem a mesma força das Leis do Alcorão.
4. Aliás, khalaqa é a ação criadora (especialmente a de Deus), literalmente "criar no sentido de formar".
5. Cf. M. Aziza, "L'Image et I'Islam", Paris, Albin Michel, 1978, p. 45.
6. A grande comunidade dos fiéis muçulmanos. Note-se que a raiz de 'umma é a mesma de 'umm-mãe.
7. Literalmente Livro dos Contos ou Cancioneiro que reúne a produção poética conservada do período da Jahiliya.
8. A propósito, lembre-se que a doutrina xiita funda-se na interpretação alegórica do Alcorão, o que a predispõe à aceitação maior da imagem.

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