São Paulo, domingo, 10 de março de 1996
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A beleza abstrata

MATEUS SOARES DE AZEVEDO
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Folha - Que importância tem a arte na cultura islâmica?
S. H. Nasr - A perspectiva islâmica considera a arte algo intimamente entrelaçado à vida. Para entendê-la, devemos saber que não pode ser isolada de tudo o que fazemos e usamos, como por exemplo os utensílios cotidianos. O Islã afirma que Deus ama a beleza e que produzir coisas belas é uma forma de veneração. Neste sentido, há uma grande estima pela arte.
Folha - Quais são as principais formas de expressão artística no mundo islâmico?
Nasr - Todas as civilizações incluem de uma forma ou de outra as formas de arte mais importantes. Contudo, há ênfase nesta ou naquela manifestação. Como o Islã considera que a Divindade não pode ser expressada de forma icônica, pode-se dizer que sua arte é "anicônica", ou não-icônica, mas nunca iconoclasta, como alguns afirmam. Assim, nem a pintura, nem a escultura ocupam uma função central, como acontece nas civilizações hindu ou cristã, por exemplo, nas quais o centro da arte é a representação da Divindade.
No Islã, as formas mais ricas de arte estão ligadas ao livro sagrado, o que inclui, do ponto de vista auditivo, a salmodia e a declamação do Alcorão; visualmente, a caligrafia; e, indiretamente, a arquitetura das mesquitas, porque é o espaço onde a palavra corânica ressoa. Uma grande importância é dada igualmente às artes que nos tocam mais diretamente, que penetram mais profundamente na alma humana, como por exemplo a vestimenta, que, depois do corpo, é a coisa mais próxima de nós, ou o ambiente ao nosso redor, o tapete por exemplo, sobre o qual nos sentamos, rezamos e comemos, ou ainda os utensílios que usamos.
Depois vêm as artes que tratam da decoração do Alcorão, como a miniatura. Esta, na forma como se desenvolveu na Pérsia, tornou-se uma das maiores escolas de pintura do mundo. Lá haviam oficinas e fábricas artesanais de papel desde o começo da Idade Média.
Folha - O que é específico da arte islâmica?
Nasr - A tendência à abstração, não no sentido moderno, mas como algo que se afasta da forma naturalista e que se move no sentido do que poderia ser chamado de "mundo inteligível", no sentido platônico. Uma arte que tenta representar e refletir a idéia central do Islã, a da unidade divina (tawhid), e que tenta integrar a multiplicidade na unidade. Busca sugerir indiretamente esta unidade por meio de seu caráter geométrico, abstrato, arabescado, na sua ornamentação geométrica e no desenho dos seus edifícios.
A arte islâmica procura ademais mostrar a fragilidade e a transitoriedade de tudo o que é terrestre. Não aceita a realidade de cada coisa em si, mas unicamente em sua relação com o transcendente. O efeito mais direto dessa doutrina é a integração. Isto é, a cultura e a sociedade islâmicas não fazem uma distinção entre o sagrado e o profano, não há as dicotomias materiais e espirituais nas quais dividimos o pensamento no mundo ocidental.
Folha - Onde se concentrou a produção artística?
Nasr - O Irã, ou a antiga Pérsia (que incluía o atual Afeganistão e boa parte da Ásia Central) foi um centro desde a época pré-islâmica. O Magreb, especialmente a Espanha muçulmana e o Marrocos. O Egito, especialmente durante os períodos Fatimida e Mameluco, com alguns grandes monumentos. A Turquia, com a arquitetura otomana. A Índia, sobretudo com a arquitetura mongol e as miniaturas. Não podemos esquecer igualmente a arte islâmica negra, como a do Mali, que tem uma profundidade e uma beleza próprias.
Folha - O que levou à proibição da representação figurativa?
Nasr - Há razões profundas para isto, entre elas o perigo de que um símbolo seja adotado como ídolo é especialmente forte entre os povos semitas. Podemos perceber essas preocupação no judaísmo também, quando a Bíblia diz: "Não criarás ou esculpirás imagens de Deus". Todas as religiões semitas que transformaram símbolos da Divindade em ídolos desapareceram, como as religiões da Babilônia e da Mesopotâmia. Assim, quando o Islã teve início entre os árabes, que são semitas, esta proibição foi implementada com muito vigor, por causa do perigo de idolatria. No Alcorão não há uma proibição explícita quanto à representação de animais ou plantas, mas unicamente no que diz respeito à face de Deus e do Profeta. Entre os povos muçulmanos não-semitas (como os turcos, os persas e os indianos), a pintura de miniaturas é muito difundida, e até mesmo no mundo árabe (especialmente na Síria e no Iraque) há uma tradição de pintura popular.
No que diz respeito às formas de plantas e animais, procura evitar o naturalismo, evita emular as formas exteriores da criação, pois isso parece aos muçulmanos uma falta de respeito para com o Criador, por causa da intenção de copiar seu poder criativo. É por isso que mesmo nas miniaturas, as formas representadas não são naturalistas. O Islã é contra qualquer representação naturalista.
Folha - Que importância teve a dominação da Espanha para a vida artística do Islã?
Nasr - A Espanha islâmica causou grande repercussão nas artes de todo o Magreb. O efeito sobre o mundo ocidental foi imenso. Grande parte da influência árabe na Idade Média européia passou pela Espanha, como as técnicas de feitura de abóbadas, alguns tipos de ornamentação em arquitetura medieval, o uso dos azulejos, praticado ainda na Espanha e em Portugal, ou os padrões geométricos.
Folha - Quais são as obras-primas da arte islâmica?
Nasr - No que diz respeito à arquitetura, eu mencionaria a mesquita de Córdoba e a Alhambra de Granada; as mesquitas do sultão Hassan e de Ibn Tulün, no Egito; a "Mesquita Azul" de Istambul; a do Shah em Isfahan, no Irã; o conjunto edificado por Timur em Samarcanda, a mesquita de Delhi e o Taj Mahal na Índia. É preciso mencionar igualmente que algumas das mais belas pequenas mesquitas do mundo ficavam na Bósnia, mas elas infelizmente foram destruídas nos últimos três anos.
Na caligrafia, citaria os manuscritos do Alcorão feitos durante o período mameluco no Egito, e os do período Irhand e Timurid no Irã. Nas miniaturas, aquelas da Pérsia e da Índia.
Folha - E a música?
Nasr - O termo música não é usado para definir o canto salmodiado do Alcorão, ou a chamada à prece. Mesmo que o ouvinte possa se dar conta de que são cantados -que é de fato o que seria chamado no Ocidente de música-, os muçulmanos evitam lhe dar essa definição. A música árabe no nosso sentido inclui as melodias de caravanas, as canções de colheita, as marchas militares etc.
A música que se desenvolveu no mundo islâmico é uma música mística e não visa suscitar as paixões inferiores da alma. Por isso, toda a música "clássica" no Islã, seja da Pérsia, da Turquia, da Andaluzia, ou do mundo árabe, ficou intimamente ligada ao sufismo, à mística. Não se desenvolveu um tipo de música pública e social, como aconteceu no Ocidente. A música islâmica permaneceu ligada à vida interior.
Folha - Por que a tapeçaria ganhou tanta ênfase?
Nasr - Os tapetes são extremamente importantes no mundo islâmico. Todos os ritos religiosos são feitos no chão; os muçulmanos em geral não usam cadeiras, sentam-se e vivem no chão, como os japoneses. Por isto, o piso é o ponto mais importante do contato com o espaço, e é nele que são realizadas todas as atividades da vida. Os muçulmanos fazem grandes esforços para embelezar esse espaço. É por isso que a tecelagem de tapetes, que teve início na Pérsia pré-islâmica, foi adotada pela civilização islâmica.
Folha - O que aconteceu em relação ao teatro?
Nasr - O teatro ocidental desenvolveu-se com base no drama grego, com a tensão entre o homem e os deuses. Esta tensão está ausente da perspectiva islâmica. Isto não permitiu o desenvolvimento de um teatro sagrado, como aconteceu na Índia e na Grécia, e mais tarde no Ocidente. Não obstante, em ambiente xiita nasceu o que pode ser chamado de "representação da paixão", associada à morte do imã Hossein, o terceiro chefe do xiismo, que é muito similar às representações da Paixão de Cristo medievais. Em suma, há teatro no mundo islâmico, mas não é uma arte central como em outras tradições.
Folha - E a arte islâmica hoje?
Nasr - Desde o século passado, o Islã sofreu o impacto da civilização moderna ocidental. O planejamento urbano e a arquitetura foram influenciados e se modificaram; aos poucos, a pintura foi se tornando naturalista. Na Índia, isto aconteceu mais cedo com a chegada dos pintores portugueses e ingleses, ainda nos séculos 16 e 17. Contudo, nos últimos 30 anos, ocorreu um reavivamento das artes tradicionais. Os focos disso são o Magreb -Marrocos especialmente-, o Irã e a Turquia. Há uma revitalização da caligrafia, da miniatura, da arte dos azulejos, da tecelagem de tapetes e até da arquitetura.

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