São Paulo, domingo, 10 de março de 1996
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O pluralismo contemporâneo

MARCO LUCCHESI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Maior do que Jelloun, o egípcio Nagib Mahfuz, Prêmio Nobel de 1989. Não conheço máquina ficcional mais poderosa do que a sua. A trilogia, que começa com "Entre Dois Palácios", tanto quanto "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, e o "Auto-da-Fé", de Elias Canetti, será uma das marcas do século. Asseguradas as proporções. Posso afirmar, quanto a mim, que a história da família de Ahmed Abd el-Gauad foi das coisas mais deliciosas que já li. As ruas do Cairo já se tornaram universais.
Todavia, a literatura árabe, no Marrocos ou no Egito, na Argélia ou na Tunísia, apresenta outros nomes de relevo, que explicam igualmente a dimensão relativa de um Jelloun e de um Mahfuz. Já não se trata de uma literatura das "Mil e Uma Noites", mas de uma narrativa nova e amalgamada com o ocidental: Musil e Kafka, Eliot e Proust, Calvino e García Márquez. Tal o aspecto mais fascinante do mundo árabe: incluir na diferença a identidade.
Penso inicialmente em Mohammed Zafzâf, o dos anos 80, do qual parece depender, de modo mais ou menos direto, a narrativa atual, cujo texto guarda uma invulgar concisão e chega mesmo a rivalizar com o silêncio. Os diálogos emergem quase destramados e as personagens, desprovidas de memória e de vontade, erram pelos caminhos da história. Tudo isso numa paisagem drasticamente simbólica e metalógica como em "O Rei dos Djins", publicado em 1988.
Mas a obra de Zafzâf também discute a árdua relação com o Ocidente, onde reinam o amor e a liberdade, como também o vício e a droga. Não chega ao patos do senegalês Hamidou Khane, em sua dolorosa "Aventura Ambígua". E nem sequer é um triste como Hamidou. Mesmo assim, Zafzâf compreende a diferença das culturas. Outros da mesma cepa, embora menos conhecidos, podem ser Al-Ghurba, Al-Yatîm, Abd Allâh Laroui.
"Pão Nu" é uma escritura vitriólica, em que nos deparamos com demônios e criminosos, humilhados e ofendidos que emergem da medina de Casablanca. Nada mais real e mais triste do que o universo de Mohammed Choukri. Chego a pensar na literatura dos guetos de Nova York. Ou num Steinbeck mais ácido e mais cortante do que em "Bairro da Lata". Mas todo o paralelo corre o risco de esgotar a marcante singularidade de "Pão Nu". Curioso saber que o tradutor de Choukri na França foi Tahar Ben Jelloun.
Paralelamente, surge uma tendência que não deseja seguir os caminhos da desconstrução e da pós-modernidade, mas buscar as raízes místicas da cultura árabe. Acompanhamos algumas experiências que, se não se apresentam totalmente isoladas no Marrocos, possuem uma singularidade tal, que as distingue do restante do mundo árabe. Não para criar um movimento de recusa e de não-comunicação. Ao contrário: para construir uma dimensão ficcional comprometida com a totalidade. Uma síntese em que comparecem os evangelhos e o Alcorão, o sufismo e a mística oriental.
A mesma nostalgia da unidade sonhada pelo místico Djalal ad-Dîn Rûmi, quando afirmava que não era cristão, judeu, parse ou muçulmano. Não era do Oriente nem do Ocidente. Seu lugar era o não-lugar. Recusou a dualidade. Procurava o Uno. Conhecia o Uno. Invocava o Uno. O Fim e o Princípio.
Ocorre-me o nome de Ahmed Bûzfûr. Um dos autores mais destacados de sua geração. Bûzfûr não chega a ser exatamente um místico. Mas sua obra conserva um segredo metafísico. Uma demanda transcendente. Uma paisagem transtextual. Uma verdade que parece brilhar quando o romance acaba. Bûzfûr degusta a sublime e áspera passagem do Alcorão na qual se afirma que Deus está mais próximo do homem do que a sua própria veia jugular. Como se uma dialética da distância movesse o romance "Não Visto e Não Conhecido", de 1987. Parábolas e metáforas constituem a trama, que parece destramar-se à medida que nada se resolve nos limites do concreto. Nada é apontado. Tudo é sugerido.
Menos universal do que Bûzfûr, Mohammed Ali Gherbaoui publicou em 1992 a autobiografia "Ponte de Luz". O subtítulo esclarece que a narrativa é um delírio místico. Seu autor viveu uma dramática cisão da personalidade. Preso nos labirintos da loucura, náufrago de si mesmo, Gherbaoui conseguiu emergir de si mesmo, partindo de uma visão luminosa da divindade. Trata-se de um livro singular. A história de sua conversão coincide com as forças ensolaradas de sua autocura. Trata-se de um livro imperfeito que agrada justamente em virtude de sua imperfeição. Deus e a loucura.
O que me parece mais importante na literatura árabe contemporânea, especialmente a do Marrocos, não é apenas a sua vitalidade, mas a pluralidade fascinante que a constitui, renova e atravessa. Vejo tudo isso com olhos de leitor. Não especialista. Sedento, perplexo e míope. Quase com resíduos borgianos. Como quem aprecia a instância do diálogo e a chama da diferença. As cordas vocais de um mundo outrora amordaçado. "Parla"!

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