São Paulo, domingo, 10 de março de 1996
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Arabescos poéticos

A riqueza do léxico converte o árabe em "língua de poetas"

NEUZA NEIF NABHAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Fazer poesia em árabe é tarefa de artífice criador, que consiste em inventar padrões de pensamento e sons dentro dos quadros de sua reverenciada tradição. Esta poesia é um arabesco de palavras e significação.
A língua árabe, dotada de traços peculiares, propicia o desenvolvimento de uma cadência rítmica bastante elaborada com o emprego de vocábulos apropriados. A riqueza do léxico juntamente com a multiplicidade de fonemas e a alternância de sílabas breves e longas convertem o árabe em "língua de poetas" (Burckhardt).
A plasticidade da poesia árabe, caracterizada pelo som e sentido, é acompanhada por um padrão métrico bastante elaborado, com 16 tipos de métrica; segundo a tradição árabe, a variação métrica tem relação com o caminhar do camelo.
A poesia árabe pré-islâmica, de caráter oral, é conhecida a partir de feiras literárias no século 5º. A forma mais cultivada da poesia pré-islâmica foi a qasida, com um mínimo de sete versos, podendo chegar a mais de cem. A qasida é a base da poesia árabe clássica e as mais famosas foram as muallaqat.
Segundo a tradição, essas qasidas, em virtude do valor inestimável, foram escritas a ouro sobre tecidos de linho e penduradas nas cortinas da Kaaba, o santuário de Meca. As mais importantes são atribuídas aos seguintes poetas: Umru al Kais, Taraf Ibn al Abd, Zuhair Ibn Salma, Amar Ibn Kulsun, Antara Ibn Chadad, Haris Ibn Hilliza.
Por meio dessas qasidas, tem-se uma idéia da vida social e dos fatos da época, uma vez que o poeta pré-islâmico relata sua experiência pessoal, suas lutas, suas viagens, as lições de sabedoria, a desculpa e a lamentação elegíaca. É importante notar que a poesia árabe pré-islâmica era essencialmente lírica.
Na época omíada, os poetas adaptam as qasidas às novas condições de vida, desenvolvendo principalmente os temas amorosos e báquicos, e estes com o sentido de êxtase espiritual.
No período abássida, podem-se identificar duas etapas no desenvolvimento da poesia. Na primeira etapa, o poeta prefere a doçura e a simplicidade do texto, ao mesmo tempo em que procura encontrar metáforas e imagens que não foram tratadas antes. O gosto pelo extraordinário conduz à composição de breves poemas monográficos que tornam o verso um quadro gráfico e plástico. Ocorre, então, a ruptura da qasida com a invenção da estrofe, chamada de dzu-bayat (duas linhas ou casas).
As idéias nacionalistas começam a se refletir no trabalho do poeta em consequência do intercâmbio cultural entre vencedores e vencidos. Novos motivos são acrescentados à temática da poesia árabe, tais como: a neve e o tema floral; os temas báquico, amoroso e filosófico são elaborados com maior liberdade; Abu Nuwas (morto em 813) foi o poeta que reuniu todas as características desta primeira fase.
Na segunda etapa do desenvolvimento da poesia abássida, os poetas resgatam a produção dos períodos anteriores, compilando os melhores fragmentos da poesia árabe pré-islâmica e dos primeiros tempos dos Islã. Esta fase se consolida com dois antólogos importantes: Abu Tamam (morto em 845), que escreveu "Hamassa" (Bravura), Al Bukhturi (morto em 897).
A presença do Islã na Península Ibérica fez com que o poeta se deparasse com um novo ambiente, embora o deserto fosse a matriz cultural. No contexto andaluz, a temática desliza-se para o verde e para os jardins, predominando o canto da natureza e a vastidão bucólica. Na poesia hispano-árabe, aparece um novo modelo de composição -a muakhacha.
Com o declínio do império islâmico (século 13), as dinastias locais patrocinaram poetas para glorificarem seu reino, desenvolvendo-se os temas panegírico e épico que descreviam as lutas dos califas em defesa de suas terras. Neste período, a composição poética que se destaca é a muakhacha, influenciando os trovadores franceses da Idade Média.
O renascimento da literatura árabe, a partir de 1796, é identificado por Nahda. A poesia desta fase tem uma diretriz política, sendo caracterizada como "literatura comprometida". O gênero tradicional da literatura clássica -a qasida- não se adapta ao novo momento que, segundo os poetas, impede a liberdade de criação. No entanto, os poetas retomam as estrofes populares -aual e band (de origem persa), muakhacha (de Córdoba) e Zegel (de Zaragoza).
Em 1905, Jamil Sidqi criou um novo sistema de versificação: sir al mursal (verso solto), que é uma alternância de versos com diferentes rimas e com precedentes na muakhacha. Na mesma época, Amin al Rayhani (1905) introduziu o sir mantur (verso livre). Os temas se voltaram, principalmente, para o social e o econômico.
Com a imigração árabe para a América, a partir do final do século 19, formaram-se grupos literários de grande importância, cuja produção é reconhecida no mundo árabe. Identificado como Adab al Mahjar (literatura de imigração), esse movimento se estendeu pelo continente americano, destacando-se os grupos de Nova York, São Paulo e Buenos Aires.
Em São Paulo, o poeta Michel Maluf foi o primeiro presidente da Liga Andaluza de Letras Árabes (Al Usbah al Andaluziah) que esteve ativa no período de 1933 e 1953. A Liga Andaluza se projetou de forma mais intensa do que os grupos de Nova York e de Buenos Aires.
Segundo alguns críticos e historiadores da imigração árabe no continente americano, os sírios e os libaneses, no Brasil, apresentaram melhor organização comunitária e os movimentos associativos (clubes, escolas, igrejas), assim como a imprensa árabe no país, colaboraram para a divulgação dos trabalhos desses intelectuais.
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