São Paulo, domingo, 10 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Avicena preservou medicina

RICHARD HORTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Fonte principal de conhecimento durante a Idade Média", concluiu o historiador Fielding Garrison, ou "escrevinhador profissional que deixou atônitos os médicos europeus com sua interpretação errônea de Galeno", nas palavras de Arnold de Villanova. Opiniões fortemente contrastantes têm sido expressas repetidamente nos últimos mil anos em relação ao maior médico árabe, Avicena (Ibn Sina), cujo "Cânone", escrito no século 11, dominou a medicina islâmica durante vários séculos.
Avicena foi o guardião dos conhecimentos gregos no campo da medicina. Com o surgimento da nação muçulmana, no século 8, passou a haver uma enorme demanda pela ciência grega. Acadêmicos árabes, como Oribásio, no século 4, e Paulo de Égina, no século 7, traduziram e acrescentaram emendas aos escritos de Hipócrates e ensinamentos de Galeno, traduzidos para o siríaco pelos cristãos nestorianos na Pérsia.
Os "Sete Livros" de Paulo se transformaram no fundamento dessa nova medicina muçulmana. A obra de Paulo foi a fonte principal do "Cânone" de Avicena, em cinco volumes, com sua descrição exaustiva das causas, sintomas, sinais e tratamentos das doenças. A disponibilidade do conhecimento grego revolucionou a cultura islâmica e infundiu nova energia nela, entre os séculos 9 e 11.
Antes de Paulo, a medicina islâmica era feita de um conjunto pouco coeso de normas de saúde -as "hadiths" (medicina de Maomé)- que aderiam com firmeza aos conceitos religiosos de corpo e alma. Mas a penetração do conhecimento grego, aliada aos princípios farmacêuticos importados da Pérsia e da Índia, resultou num sistema médico abrangente capaz de concorrer com qualquer outro. No século 11, por exemplo, Abu al-Biruni escreveu um livro didático de farmacologia clínica, incluindo mais de 700 medicamentos.
Embora o conhecimento alquímico avançasse rapidamente, o humorismo (sistema no qual as doenças são atribuídas a humores) que impregnava a medicina galênica foi adotado sem críticas pela maioria dos escritores islâmicos. O texto de Ibn Sina dominou o pensamento médico durante 700 anos.
A contribuição islâmica à saúde pública, ao ensino médico e à profissionalização da medicina foi sem dúvida o mais duradouro legado islâmico. Pequenas escolas de medicina ofereciam ensino clínico, e o Estado, através de um examinador nomeado ("bash hakim") ou do médico-chefe do califa, concediam aos estudantes bem-sucedidos o direito de praticar ("i-jaza") a medicina. As normas que governavam a prática clínica eram derivadas das mesmas regras que traduziam os códigos -"hisbah"- do Alcorão para a vida do dia-a-dia. A ética médica foi outra contribuição importante dos médicos do mundo islâmico, especialmente do também rabino Maimônides.
A primeira "casa de doentes" particular, ou "bimartistan", foi aberta por Ibn Barmak em Bagdá, em 803. Os bimartistans representavam a riqueza e beneficência real, mas procuravam cuidar de doentes de todas as camadas sociais, incluindo doentes psiquiátricos. Esses hospitais costumavam ser financiados por donativos religiosos. Os estudantes recebiam seu treinamento clínico neles, e cada escola contava com sua própria biblioteca. Esse modelo não mudou muito no mundo não-islâmico durante os últimos mil anos.
Será que as lições da medicina islâmica se limitam a seus modelos institucionais? Segundo o historiador da medicina islâmica Manfred Ullman, os "hakims" (médicos) estavam menos interessados em fazer descobertas médicas do que em reinterpretar os escritos de seus antepassados gregos. Sua crença persistente no equilíbrio entre os humores galênicos -sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra- pode parecer anacrônica ao leitor moderno. O médico se via reduzido a simplesmente adicionar ou subtrair a substância nociva.
É claro que esse sistema de medicina se distanciava da noção religiosa das influências divinas sobre a saúde. O método grego de cura se fundiu com a tradição islâmica, resultando na medicina profética praticada por especialistas leigos conhecidos como "ulamás".
Já os sufis místicos se apegavam à idéia de que apenas a observância dos preceitos religiosos poderia curar os doentes. Outros, ainda, praticavam técnicas astrológicas, embora essas fossem criticadas por Avicena. Tais aparentes conflitos de opinião exerciam pouco efeito na vida real. Em casos de necessidade urgente, os seguidores rígidos das normas teológicas acabavam buscando ajuda secular.
Durante o século 7, os médicos muçulmanos recorreram aos conhecimentos de seus colegas europeus. Ironicamente, os líderes médicos islâmicos acreditavam que a hegemonia comercial européia tinha seu paralelo em habilidades clínicas superiores. Na realidade a Europa passou esse período ainda presa à tradição galênica, seus médicos tendo frequentemente sido ensinados com base em textos de Avicena e seus contemporâneos.
Pouco a pouco as idéias de Paracelso passaram a dominar, graças em grande parte aos esforços de Ibn Sallum, no século 17. À medida que os anos passavam, os avanços científicos europeus começavam a atrair cada vez mais atenções. Depois da abertura de uma escola médica dedicada aos métodos europeus no Cairo, no século 19, os médicos europeus passaram a estar em grande demanda em todo o mundo muçulmano. Os últimos vestígios de uma filosofia médica que pudesse ser caracterizada como islâmica haviam desaparecido.
Mas, embora as tradições islâmicas tenham sido superadas pelas teorias ocidentais relativas às doenças, os médicos continuam a interpretar a prática científica moderna num contexto islâmico. Sua abordagem humanística e holística preservou importantes elementos do sistema islâmico, que exerceu profundo impacto sobre nossa visão de mundo da medicina.

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Tailândia se converte em campo de experimentos contra a Aids
Próximo Texto: Conquistas científicas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.