São Paulo, domingo, 10 de março de 1996
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A idade de ouro

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

O legado cultural do Islã, tema desta edição do Mais!, é examinado na entrevista a seguir pelo ensaísta Edward Said, o intelectual árabe de maior expressão mundial. Professor de literatura comparada da Universidade de Columbia, em Nova York, Said é também pianista, musicólogo, comentarista político, membro do Conselho Nacional Palestino entre 1977 e 1991 e autor de 14 livros.
As imbricações entre a política e a cultura nas relações coloniais constituem preocupação central de sua obra. Seu livro mais conhecido, "Orientalismo" (Companhia das Letras), desconstrói as imagens do Oriente criadas no Ocidente. Aqui o Oriente -associado ao reino encantado do fanatismo, da violência, da aventura e da sensualidade- aparece quase que como pura criação do Ocidente.
Edward Said nasceu em 1938 na Palestina em uma família protestante. Estudou no Egito e aos 15 anos mudou para os Estados Unidos. Intelectual versátil, retira de sua condição mista de árabe, anglicano e americano, a inspiração para uma postura profissional engajada, que procura no entanto resguardar a independência necessária à produção crítica de idéias.
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Folha - Em seu esforço em abordar o intercâmbio entre culturas, como o sr. pensa a influência do legado árabe na cultura ocidental?
Edward Said - Essa influência se deu em uma série de níveis.
Primeiro, acho que há uma influência óbvia em arquitetura. A grande arquitetura, aquela representada pela Mesquita de Omar, em Jerusalém (a mais antiga mesquita construída do mundo, conhecida como "Cúpula da Rocha", por ter uma rocha sagrada em seu subsolo), por algumas das grandes mesquitas do Cairo e da África do Norte, teve um efeito enorme na arquitetura européia e ibérica.
Refiro-me à estrutura de colunas, cúpulas e abóbadas e um certo tipo de graça de espaços essencialmente estreitos, repletos de passagens, em oposição às formas sólidas, grandiosas e pesadas do estilo gótico. A estrutura islâmica é baseada na leveza, no uso imaginativo da água -como no Alhambra. E se espalhou pela Europa, especialmente através dos ornamentos, em particular dos arabescos.
Em segundo lugar, historicamente o Islã tem uma tradição científica notável. Ao contrário do que às vezes se diz, a relação do Islã com a ciência não se resumiu a transferir conhecimento grego para o Ocidente. Toda a criação de uma retórica científica em ótica, em física, em astronomia -no período, digamos, do século 10 ao 15- foi invenção dos árabes.
Folha - Esta influência é reconhecida no Ocidente?
Said - Há atualmente um interesse renovado pela história da ciência islâmica e da ciência árabe entre acadêmicos na Europa, na América e no Oriente Médio. E essa é uma tradição fenomenal, principalmente em matemática.
Há todo um desenvolvimento árabe nessa área nos séculos 13 e 14, sobre o qual as pessoas sabem muito pouco, mas que penetrou profundamente o pensamento ocidental, a ponto de sua origem árabe ter sido esquecida. Mas toda a idéia de pensar sobre gramática é realmente uma das grandes invenções árabes, que perpassa as tradições ocidentais e continua -através de noções como as de estrutura profunda e idéias inatas- no trabalho de estudiosos como Jakobson, Chomsky e outros.
Há ainda um outro nível de influência árabe: a linguagem da devoção e da auto-análise, que está presente em autores como Rousseau e Agostinho, é muito, muito desenvolvida na tradição islâmica, assim como o misticismo. Por último, quando se pensa em narrativa, o livro mais importante e mais influente -com exceção da Bíblia- é de origem árabe. Refiro-me, é claro, às "Mil e Uma Noites".
Folha - Todas essas influências dizem respeito a uma cultura árabe milenar. Como é a convivência contemporânea com esse legado?
Said - Bem, os intelectuais árabes procuram equacionar esse legado de alguma forma. Mas uma das grandes questões no mundo árabe hoje é a questão da modernidade. É claro que a cultura árabe é uma cultura tradicional. Há um sentido muito poderoso de linguagem, cujo monumento-mor é o Alcorão, que é a palavra de Deus. E há uma literatura imensa, que se constitui em um grande orgulho.
Historicamente, os maiores feitos árabes se situam nas áreas de literatura e da linguagem. Uma grande questão enfrentada pelos escritores é até que ponto eles devem permanecer fiéis à tradição. Ainda vivem em um mundo conservador dominado pela religião. E é sempre bom lembrar que, no idioma árabe, religião e linguagem estão intimamente conectadas.
Folha - Como eles lidam com a modernidade ocidental?
Said - É possível apreender um esforço de inserção na contemporaneidade nos autores que continuam a produzir literatura decente. Naguib Mahfouz, que ganhou o prêmio Nobel há sete anos, é um exemplo de grande escritor, mas há outros na Síria, no Líbano, Jordânia, Egito e Marrocos. As mulheres e os movimentos de resistência jogam um papel importante na oposição ao regime, na defesa dos direitos humanos e na oposição à onda de crescimento do islamismo, que por sinal, creio, está sendo superestimada no Ocidente.
Folha - O fim dos impérios coloniais acompanhou o crescimento da importância econômica dos países árabes e o fortalecimento do Islã. Pode-se falar em reflorescimento concomitante da cultura árabe?
Said - Creio que não. Os países árabes decaíram em todos os sentidos na última década. O PIB caiu, a produção agrícola caiu. Por exemplo, Síria e Algéria costumavam ser exportadoras de grãos. A Algéria costumava abastecer não somente a si mesma, mas também à Europa. Hoje eles importam.
Há uma total ausência de democracia em vários desses países. E, mais significante ainda, há uma total ausência de ciência. As universidades em geral não se destacam. A cultura está regredindo para uma espécie de nacionalismo passadista ou fundamentalismo religioso. Então, eu diria que somos o único grupo importante que não passamos nos últimos anos por uma renovação. Estamos presos à velha burocracia, às estruturas tribais.
Para um árabe como eu, comprometido e interessado no mundo árabe, é muito desencorajador comparar o que aconteceu lá com o que tem acontecido por exemplo na Ásia. Em 1950 Egito e Coréia tinham a mesma renda per capita muito baixa, em torno de US$ 600 por ano. Hoje, a Coréia é um dos países mais ricos do mundo. O Egito ainda é dos mais pobres.
E eu acho que um dos problemas foi o petróleo. A descoberta repentina de um recurso natural extremamente valioso e que é totalmente exportado, transformou os estados árabes em estruturas militares. Os estados de segurança nacional são estados de aluguel, na realidade não se produz. Esses estados se transformaram em importadores. Há uma tremenda onda de consumismo no mundo árabe, que vem se somar ao que eu disse antes sobre a ausência de instituições, de ciência, de sociologia... Então estamos envenenados. Talvez no limiar de alguma mudança, mas ainda não chegamos lá.
Folha - O sr. descreve um panorama desolador, que contrasta com o passado glorioso da cultura árabe. Qual a influência árabe no mundo contemporâneo?
Said - É muito, muito pequena. Uma vez um editor me pediu uma lista de romances do Terceiro Mundo para publicar. Eu lhe dei o nome de Naguib Mahfouz, entre outros. Ele não traduziu nenhum deles. Eu perguntei: "Por que você não publicou os árabes? Por que publicou os portugueses, os brasileiros e os africanos, mas não os árabes?". Ele respondeu que o árabe é uma língua muito controversa. Eu nunca me esquecerei disto.
Folha - Não lhe parece estranho que essa marginalização ocorra quando há tantas vozes do mundo árabe no mundo ocidental...
Said - Mas são vozes individuais. Infelizmente, não há um sentido coletivo no mundo árabe. E a maior parte das vozes interessantes está no exílio.
Folha - Até que ponto influências de partes do Terceiro Mundo sobre outras partes deveriam ser estudadas, ao invés de se estudar apenas as do Primeiro no Terceiro Mundo?
Said - Sim, creio que não há nada pior do que restringir nosso foco sobre as relações bilaterais entre Primeiro e Terceiro Mundo. Por que nós, árabes, temos sido tão obcecados pela Europa? Por que não nos lembramos que os árabes foram os primeiros a ir para lugares como a Índia e a China? Os árabes descobriram o Ceilão.
Você tocou em um ponto extremamente importante. É crucial hoje fazer algo que está no coração da descolonização, que é olhar para as relações entre as culturas colonizadas e as várias culturas que historicamente tiveram uma interação rica com elas, como a árabe e a latino-americana, ou a árabe e a hispânica, ou a persa e a japonesa.
Folha - Em "Cultura e Imperialismo", o sr. se refere à cultura como provedora de uma terreno comum onde conflitos ocorrem. Poderia falar mais sobre essa noção?
Said - Cada vez mais, e de maneira bastante errada, a maior parte das pessoas assume que culturas são diferentes umas das outras e que contêm barreiras que as mantêm separadas. E que, de acordo com um marxismo vulgar, cultura é basicamente superestrutura, isto é, resultado de outros fatores.
Creio que isto está errado. Em primeiro lugar, porque todas as culturas se apropriam ou se misturam com outras. Em segundo lugar, porque todos os fenômenos culturais são contestados, embora toda sociedade possua uma cultura oficial e uma cultura alternativa. Ambas são mantidas graças a uma boa dose de esforço, de resistência.
Em certo sentido, há um choque não de culturas, mas de definições. Por exemplo, há muita atenção dedicada ao islamismo no mundo islâmico hoje. Mas ninguém possui uma definição clara do que seja o Islã. As pessoas brigam em torno da definição do que é o Islã.

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