São Paulo, domingo, 10 de março de 1996
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A eloquência milagrosa do Alcorão

HELMI NASR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Etimologicamente, a palavra "Alcorão" (Alquraan) é constituída do artigo definido invariável "Al" mais o infinitivo substantivado "Corão" (quraan), do verbo "quara'a", que significa "ler". Portanto, Alcorão é o ler, ou seja, a leitura, no sentido mais amplo do termo. Já no título temos a demonstração cabal da índole cultural do islamismo, enaltecedor do saber, da leitura, do conhecimento entre os homens.
Não é ocioso lembrar que o primeiro versículo revelado cronologicamente ao profeta Maomé reitera este compromisso com o saber, expresso na ordem categórica: "Lê, em nome de teu Senhor, que tudo criou" (XCVI 1). E se, por um lado, o profeta iletrado não podia ler as palavras divinas com os olhos, lia-as com o espírito privilegiado do ser profético que, depois, pela palavra recitada e escrita pelos adeptos, disseminou o saber e os conhecimentos, por gerações e gerações.
Segundo a tradição, o profeta Maomé começou a receber as revelações alcorânicas do anjo Gabriel, no ano 610 de nossa era. Por quase 23 anos, até a morte do profeta, em 632, a palavra divina foi-lhe sendo revelada por partes e sempre vinculada às circunstâncias que envolviam o profeta e seu povo.
À medida que chegavam ao profeta os versículos revelados, ele os transmitia de imediato e oralmente a um grupo de seguidores letrados, que os anotavam sobre omoplatas de animais, pergaminhos, pedras, sobre o que quer que lhes estivesse à mão no momento.
Cabe mencionar, nesse ponto, que o Alcorão constitui o único livro divino registrado no mesmo instante da revelação. Dois anos após a morte do profeta, compilou-se o conteúdo das revelações, dispostas, conforme indicação pelo profeta, em 114 suras ou capítulos de número variado de versículos, num total de 6.239.
O milagre que plasmou o Alcorão, na essência de seu conteúdo, não se dissocia nunca da forma com que foi anunciado, e, por essa prerrogativa estilística, o Livro Sagrado é tido, pelos eruditos árabes, como a obra máxima da literatura árabe.
A propósito do milagre alcorânico, vêm-nos à mente os milagres que envolvem as mensagens divinas inspiradas aos antecessores de Maomé. Lembramos que Moisés e Jesus, que precedem Maomé, deram provas a seu povo de haverem sido ungidos de uma força superior ao conhecimento humano.
Maomé chegou a seu povo no exato momento em que à eloquência estava reservado um lugar de honra dentro da sociedade árabe, superando-a, no conteúdo e na forma. O Alcorão, por ele trazido, além de representar o elo da corrente divina, iniciada pela Torá e
pelo Evangelho, define sobretudo o grande milagre estilístico que tornou atônito o mais eloquente de seus contemporâneos.
O estilo alcorânico
O Alcorão é considerado o orgulho dos árabes quanto ao estilo, a seus aspectos retóricos, tão persuasivos e de beleza ímpar, algo diferente de qualquer outro estilo árabe. E tanto essa singularidade é verdadeira, que os árabes, ao tempo da revelação, ouvindo recitar o Alcorão, nos lugares de oração ("masjid", por corruptela fonética -"mesquita"), ficavam assombrados, fossem ou não crentes, seguidores ou não do Profeta.
Al Walid Ibn Muguirah, um dos mais ferrenhos inimigos de Maomé, está nesse caso. Depois de ouvir-lhe alguns versículos, apenas, voltou a seus companheiros, igualmente adversos ao líder islâmico, confessando-lhes seu assombro, ao que concluíram não poderem tais palavras, de prodigiosa beleza de forma e conteúdo, serem criadas por homens ou jinns.
Nessa época, inícios do século 7º, os árabes conheciam apenas a poesia (lírica e satírica) com rima e a prosa sentenciosa, ficcional e histórica. O Alcorão, tal como se lhes apresentava, era algo absolutamente inédito, nem prosa nem poesia, mas um universo parenético, cujos propósitos extravasavam os cânones literários conhecidos da época. Era algo diferente, de fato. Seus mais de seis mil versículos contêm, cada um, sentido autônomo e completo, e, ao mesmo tempo, estão ligados ao conjunto contextual da sura em um todo extremamente harmonioso.
A importância transcendental do Alcorão reside, sobretudo, na unificação nacional que promoveu e, consequentemente, na unificação linguística. A língua árabe alcorânica foi, antes, um dialeto prestigiado da tribo Quraich, uma das inúmeras tribos que povoavam a Península Arábica, desde tempos imemoriais.
Tribo de escol, respeitada, poderosa, a mesma de que provinha o profeta. O Alcorão transformou o dialeto quraich em língua nacional e transnacional, pois ela foi propagada a todos os povos conquistados pelo Islã e é, aliás, a mesma língua de cultura que no século 8º, saindo da Península Arábica, chegou a uma outra península, a Ibérica, nela edificando um dos mais esplendorosos momentos civilizacionais da Idade Média Ocidental.
A língua árabe alcorânica fecundou morfológica e semanticamente a língua nacional dos árabes com vocábulos que recortavam novas realidades na religião, no monoteísmo absoluto, na anunciação escatológica única. O estilo alcorânico inaugurou revoluções linguísticas de toda ordem. Sua objetividade é exemplar: faz-se compreender com palavras na justa medida, apesar do uso abundante de figuras e tropos, valiosos instrumentos utilizados para expressar as verdades divinas.
Por essa objetividade e concisão, os oradores da época começaram a ilustrar suas falas com alguns dos versículos sagrados encontrados no Livro, além de passarem a adotar procedimentos lexicais e frasais ali contidos. É a beleza fecundante do Livro impondo-se como paradigma.
Lições de estilo
As lições de estilo do Alcorão abarcam a estilística fônica, lexical e sintática. Quanto à estilística fonética, a evocação sonora das palavras no Alcorão emerge de fonemas concebidos de forma intra e inter-harmônica. As palavras são, por via de regra, sonicamente adequadas, sem divergência de sons nem conflito de prolação. Assim, dos sons às palavras, não há superficialidade, gratuidade, mas uma grande razão, um propósito: o suporte inconcusso para a mensagem de Deus.
Quanto à estilística léxica, há tamanha integração das palavras nos versículos alcorânicos, que se torna impossível permutá-las ou substituí-las, mesmo que por sinônimos, sem prejudicarmos o estilo, a beleza da forma e a perfeição do sentido. A escolha das palavras obedece a rigor matemático. Entre louvor e agradecimento, avareza e mesquinhez, conhecer e saber, escutar e ouvir, enfim, existe um critério valorativo, que mede a musicalidade e o volume vocabular em relação à sinfonia frásica, que lhe determina o exato lugar.
Ademais, na frase admoestadora, na acerba advertência, a palavra eleita é, invariavelmente, forte, dura como pedra lançada para ferir a consciência obtusa; o conselho, por outra parte, é dito com palavra melíflua e suave, tal como o alento do crente harmonizado com a palavra de Deus.
No que diz respeito à estilística sintática, a frase alcorânica é unívoca, clara e, indo direto do ouvido ao coração, não oferece margem a interpretações duvidosas. A ordem indireta é a norma, porque o verbo, na língua árabe, é a palavra básica e geradora de vocábulos, devendo, por isso, encabeçar, solene e enfaticamente, a frase. Fica, pois, a ordem: verbo, sujeito, complemento. Muito raramente podem ocorrer inversões diversas de termos.
Um lugar à parte merece o uso de figuras e tropos, recursos expressivos variados, de que a parenética alcorânica faz largo uso, com o fito constante de convencer o crente:
a) A similitude: encontram-se no estilo alcorânico dezenas de similitudes, não só para comparar o concreto com o concreto, o abstrato com o abstrato, mas também o que não pode ser sentido com o que pode sê-lo. Assim, diz o Alcorão a propósito da obliteração das más obras humanas: "O exemplo das sobras dos que renegam a seu Senhor é como cinza, em que o vento sopra, intensamente, em dia tempestuoso..." (XIV, 18).
b) A metáfora: não é menos frequente, nem menos bela: "... Senhor meu! Por certo, fraquejam-me os ossos e flameja-me a cabeça encanecida..." (XIX, 4).
c) A metonímia: aparece no conselho do sábio Luqman, quando deseja incutir em seu filho a modéstia: "E não voltes, com desdém, teu rosto às gentes, e não andes com jactância pela Terra..." (XXXI, 18).
d) A sinédoque: bastante presente no Alcorão, tem, neste versículo, exemplo privilegiado: "E pergunta à cidade, onde estivemos, e à caravana, em que viemos..." (XII, 82).
O estilo alcorânico fascina, mormente pelo senso de economia da palavra, pelo caráter sintético da língua árabe e pela sutileza e dom de sugestão que nele existe. Tais recursos, vale repetir, ganham consistência na medida em que suportam a palavra de Deus, que, no Livro Sagrado, contempla todos os escaninhos do saber.
A pluridisciplinaridade do Alcorão define-o como uma enciclopédia não só de assuntos religiosos, senão também morais, sociais e científicos.
No que tange à religião, são surpreendentes os paralelos entre o Velho Testamento, o Novo Testamento e o Alcorão. Grande parte de suas narrativas históricas tem correspondência bíblica. Neles figuram Adão, Noé, Abraão, Isaac, Ismael, José, Moisés, Davi, Salomão, Jó, Jonas, Zacarias, João Batista, Jesus e Maria.
Salvo o preceito sabático, considerado dever local, o Alcorão confirma o decálogo da legislação mosaica. Aliás, o Livro relembra, permanentemente que é a confirmação da Torá e do Evangelho, ambos luz e orientação para os homens: "Por certo, fizemos descer a Torá; nela há orientação e luz" (V, 44).
Além disso, o Alcorão ordena a Maomé que creia em todos os profetas anteriores: "Cremos em Deus e no que foi descido sobre nós, e no que fora descido sobre Abraão, e Ismael, e Isaac e Jacó e sobre as tribos e no que fora concedido a Moisés e a Jesus, e aos profetas de seu Senhor. Não fazemos distinção entre nenhum deles e, para Ele, somos muslimes".
A idéia fundamental no Alcorão é de que tudo promana de Deus, como criador único, universal, e a quem tudo retorna: "Ele é o Primeiro e Derradeiro e o Aparente e o Latente. E Ele, de todas as coisas, é Onisciente" (LVII, 3).
O Dia da Conta
O Alcorão enfatiza a criação do primeiro homem, Adão, e o vê como a criatura privilegiada por excelência no mundo, a quem Deus pôs tudo à disposição, nos céus e na Terra. "E, com efeito, honramos os filhos de Adão e levamo-los por terra e mar, e demo-lhes por sustento das cousas benignas, e preferimo-los a muitos dos que criamos." (XVII, 70)
Paralelamente, o Alcorão procura demonstrar que a vida terrena é espécie de prova constante para o ser humano, cujas ações serão recompensadas na Vida Derradeira, no Dia da Conta. Conforme sejam boas ou más, o Paraíso ou o Inferno ser-lhe-á oferecido.
O bem é proclamado como finalidade última da ação do homem, e os profetas existem, segundo o Alcorão, para lembrar o homem disso: "Por certo, Deus ordena a justiça e a benevolência e a liberalidade para com os parentes, e coíbe a obscenidade e o reprovável e a transgressão. Ele vos exorta, para meditardes" (XVI, 90).
Como guardião e continuador da tradição, o Alcorão é caracterizado por uma imensa amplitude, onde se engloba toda a substância da lei moral, encontrada dispersa, até então, nos ensinamentos dos santos e dos sábios, fundadores e reformadores, distantes uns dos outros, no tempo e no espaço.
O conjunto ordenado de seus textos constitui um programa completo de vida prática: o comportamento do ser humano consigo próprio, com a família, com seus semelhantes; de modo geral, princípios que devem reger as relações entre governantes e governados, entre Estados ou comunidades; o culto a Deus.
O Alcorão não só fornece a regra comportamental de forma mais detalhada a respeito de todos os ensinamentos práticos anteriores, mas também, sob esse edifício colossal de aplicações, percebemos a existência dos mais sólidos alicerces teóricos.
Questionando, por exemplo, em que se fundamenta a lei do dever alcorânico, e qual a fonte em que sorve sua autoridade, obteremos a resposta de que a distinção entre o bem e o mal, antes de ser uma legislação celeste, é uma intuição interior, inscrita na alma humana.
Portanto, razão e revelação constituem apenas uma única luz bivalente, reveladora do mesmo objeto; é a dupla tradução de uma realidade original una e idêntica, enraizada na essência das coisas.
Se indagarmos sobre o caráter desta lei e o alcance de seu poder, o Alcorão responderá tratar-se de uma lei universal e eterna que assegura à humanidade suas legítimas aspirações, mas se opõe categoricamente a seus apetites caprichosos e arbitrários.
O império do dever
O Alcorão não nos apresenta o poder divino como algo absoluto, bastando-se a si mesmo, para construir, a nossos olhos, o império do dever. Pelo contrário, é muito construtivo verificar como este Livro se preocupa em fornecer justificativas a cada determinação da lei, a cada preceito de valor moral.
Por exemplo, quando nos propõe a aceitarmos de nosso próximo toda atitude conciliadora, mesmo em nos sendo ela desvantajosa. Justifica sua recomendação por esse aforismo: "... e o reconciliar-se é um bem" (IV, 280).
Conceder um prazo ao devedor, quando este se encontra em dificuldade para pagar, é um dever; mas perdoar definitivamente sua dívida é muito mais louvável: "E, se um devedor está em dificuldade, então concedei-lhe espera, até que tenha facilidade. E fazerdes caridade vos é melhor..." (II, 280).
Quanto à forma e ao conteúdo do Alcorão, torna-se evidente a necessidade de reivindicar a atenção de cientistas e pesquisadores dos vários ramos do conhecimento humano, no sentido de divulgar no Ocidente a obra que contribuiu para erguer os sólidos alicerces de uma civilização. Libertando-se de idéias preconcebidas, o pensamento oriental e ocidental, tratados com total isenção de ânimo, levarão à aproximação de diferentes culturas, servindo de prelúdio a uma maior compreensão, para o bem da humanidade.

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