São Paulo, segunda-feira, 11 de março de 1996
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Wagnerianos ainda esperam pelo "Parsifal" de Knappertsbusch

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gostar ou não de Wagner é irrelevante. Ele é a figura central da arte européia na segunda metade do século passado e sua influência se mede na obra de poetas como Baudelaire e Mallarmé, romancistas como Proust e Joyce, e compositor tão diversos como Richard Strauss, Schoenberg, Mahler e Debussy. A recepção das obras de "arte total", sua apropriação pelo nazismo e posterior rejeição no mundo liberado; mais recentemente, sua reavaliação e popularidade formam um dos capítulos mais complexos da história cultural moderna.
Escrita entre 1877 e 1882, Parsifal é sua última ópera e resume uma trajetória de quase trinta anos, desde Lohengrin até a tetralogia do Anel e passando por Tristão e Isolda. "Wagner é um lindo crepúsculo, que foi tomado por uma aurora", escreveu Debussy. Mas reconhecia, em Parsifal, "um dos maiores monumentos jamais erguidos à glória da música", opinião compartilhada por Thomas Mann, no ensaio "Sofrimento e Grandeza de Richard Wagner". E mesmo Nietzsche, seu maior adversário na década de 1870, reconhecia, a contragosto, no prelúdio, o ponto mais alto da carreira do compositor, um "evento da alma" só comparável à poesia de Dante.
Oracular, ritualística, perpetuamente estranha, Parsifal não tem gênero definido, nem musical, nem dramático. Wagner falava de "Bhnenweihfestspiel", que pode-se traduzir, livremente, como um "auto da consagração". Não é uma ópera, mas alguma coisa entre as Paixões de Bach e a Flauta Mágica de Mozart, com luzes ainda da Missa Solemnis de Beethoven. O musicólogo Robin Holloway a descreve como uma espécie de Tristão e Isolda ao avesso: se naquela ópera o erotismo era apresentado sob forma de devoção religiosa, agora são as espiritualidades de Parsifal que vem se expressar em outras tantas volúpias.
Adorno falava, perversamente, de uma "fantasmagoria"; e um psicanalista como Slavoj Zizek vê na história do "tolo sábio", renunciando ao amor da mulher e restituindo a espada milagrosa ao rei moribundo, nada menos que "os paradoxos econômicos do sujeito", um curto-circuito onde "coincidem as condições de possibilidade e impossibilidade". Carl Dahlhaus, entre outros, salienta a influência de Schopenhauer neste drama da renúncia e da negação da vontade. Nenhuma descrição é definitiva, mas em conjunto elas apontam para a sedução atualíssima de Parsifal, com sua mistura de religiosidade e sado-masoquismo, cultura popular e sofisticação decadentista.
Os wagnerianos mais convictos recomendam até hoje a gravação, em discos 78 rpm, da apresentação ao vivo em Bayreuth, regida por Knappertsbusch. Desde o ano retrasado, a Decca vem distribuindo gravações do regente (Mestres Cantores, aberturas); a Orfeo lançou seu Tristão e Isolda e Gõtterdãmmerung; e a Schwann, excertos do Anel. É de se supor que Parsifal também não deve demorar. Enquanto isto, estamos bem servidos com James Levine regendo a orquestra do Metropolitan, em CDs da Deutsche Grammophon, de 1995, com os solistas Placido Domingo e Jessye Norman; e também, chegando agora ao Brasil, na série "Mid-Price Opera" da EMI, com a gravação de dez nos atrás da Welsh National Opera, regida por Reginald Goodall.
Goodall não tem a fibra, nem a orquestra de James Levine (muito superior nos prelúdios e na cena da Transformação). Sua leitura chega a ser sadicamente lenta, com os cantores sofrendo delícias a cada sílaba e a oquestra solfejando cuidadosamente seu êxtase. Mas o efeito, depois de algum tempo, vai-se tornando mais natural. Com excessão de Waltraud Meier, que faz uma Kundry cativantemente amarga, todos os cantores são britânicos, com destaque para o Parsifal de Warren Ellsworth, mais variado e convincente do que Domingo.
"Só com Wagner encontramos um material musical de uma vez só completo e inacabado, aceitável como definitivo e indeterminado, e pertencendo simultaneamente ao passado e ao futuro, sem qualquer distorção da lógica." São palavras de Pierre Boulez, e dão outra medida da atualidade de Parsifal. Ela serve, hoje, para nos definir, em mais um final de século, onde religião, sexualidade e arte vem se enredar no mesmo ato, ou auto de consagração.

Nome: Parsifal
Solistas: Warren Ellsworth, Waltraud Meier,
Donald McIntyre, Philip Joll e outros solistas
Orquestra: Coro e orquestra da Welsh Nation Opera
Regente: Reginald Goodall
Lançamento: 4 CDs EMI "Mid-Price Opera"

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