São Paulo, quarta-feira, 13 de março de 1996
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'Gertrude Stein' mergulha na modernidade

ELVIS CESAR BONASSA
DA REPORTAGEM LOCAL

A peça "Gertrude Stein, Alice Toklas e Pablo Picasso", de Alcides Nogueira, com estréia marcada para sexta-feira, é um painel de textos da modernidade. Pelo menos metade de tudo o que for dito pelos personagens em cena saiu dos livros e correspondências de Gertrude Stein, Aragon, Joyce, Rimbaud, Baudelaire, T. S. Elliot, Picasso, Verlaine, Fernando Pessoa, entre outros tantos.
O uso obsessivo de citações é também um procedimento da modernidade. O filósofo alemão Walter Benjamin, por exemplo, sonhava, nas primeiras décadas deste século, em fazer um livro unicamente com citações de outros autores. Ao ser encaixada em novo contexto, a citação ganha novas significações e as próprias idéias de "discurso original" e "autor" são postas em xeque.
A peça de Alcides Nogueira tem como fio narrativo a vida da escritora norte-americana Gertrude Stein em Paris, nos anos que antecedem e incluem a Primeira Guerra, casada com outra mulher, Alice Toklas, e convivendo com o pintor espanhol Pablo Picasso. Mas o objeto da peça é exatamente o discurso da modernidade.
"Eu quero saber como apareceu, quais são os focos seminais e para onde vai o discurso moderno", diz o autor. Nessa busca das origens, Nogueira já escreveu em 89 "Ópera Joyce" e em 92 "Retrato de Gertrude Stein". A nova peça é uma abordagem ampliada da peça de 92. O próximo texto já planejado, com a mesma preocupação, é "O Barco Bêbado", sobre o poeta francês Rimbaud, que fechará o ciclo.
O uso de tanta literatura e as preocupações teóricas do autor não conduzem, como se poderia temer, a um texto intragável. A relação afetiva e sexual entre Gertrude e Alice, as ironias de Picasso e os choques cômicos garantem a força dramática da montagem.
Para encontrar o tom de comédia -uma "comédia anárquica", na expressão do diretor Antonio Abujamra-, Alcides Nogueira incluiu "citações fáceis", imediatamente identificáveis pelo público.
Entram nessa conta expressões como "circuladô de fulô", "cozinha maravilhosa da Ofélia", "antropofagia, tropicalismo, geração 80, Casa 7, Jovem Guarda" (essas últimas todas abominadas pelo personagem Picasso, que as cita).
"É uma maneira de facilitar a leitura do espetáculo", diz Alcides Nogueira. Mas é também, mais uma vez, uso de recursos estéticos consagrados pela modernidade: romper fronteiras entre popular e erudito, colocar em questão o "gosto refinado" e elevar à qualidade de arte coisas banais como roda de bicicleta ou lata de sopa.
Não é apenas com efeitos cômicos que os choques entram na peça. Eles estão presentes desde o início nas relações entre os três personagens que dividem a cena.
Gertrude Stein, escritora brilhante, discute várias vezes com Picasso, o grande nome do cubismo. Alice, autora de um livro de culinária, está a anos-luz do universo intelectual dos dois gênios. Mais choque. A guerra, por fim, modificando profundamente os hábitos e colocando todos em risco. Choques, choques, choques.
É mais uma vez um tributo ao discurso moderno, que o autor elegeu como tema. São afinal os choques das metrópoles nascentes, Paris em especial, que deram impulso a boa parte da produção cultural a partir da virada do século.
O homem na multidão, esbarrando em desconhecidos, a força e as explosões das máquinas, a velocidade dos transportes: fatos hoje banais, mas que impressionaram do poeta Charles Baudelaire ao cientista social Friederich Engels.
"Gertrude Stein, Alice Toklas e Pablo Picasso" reúne todos esses vetores. Os blocos de texto se chocam, a velocidade é alta, os diálogos são quase impossíveis -seria mais apropriado falar em monólogos justapostos. À sombra dessa desumanidade, que culmina na guerra, o amor entre duas mulheres é a única coisa que acaba fazendo sentido.

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