São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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o bom mito

MARIO VITOR SANTOS

A morte do ídolo resolve uma tensão, a favor do fã
Foi realizado o supremo ideal do fã. Em situações normais, os fãs colecionam fotos, objetos, pedaços de roupas, qualquer coisa que funcione precariamente como substituto do ídolo mesmo. Agora, recolhe-se morbidamente um pedaço do próprio ídolo, como aconteceu com o braço esquerdo do vocalista dos Mamonas Assassinas, Dinho.
O braço estava abandonado, em meio aos destroços revirados do avião, que, como todos sabem, espatifou-se contra a Serra da Cantareira.
A polícia não achou. O fã, sim. Não levou ao necrotério, às autoridades ou à família, mas à redação do jornal "Notícias Populares". O membro foi fotografado com exclusividade. Legistas atestaram, familiares protestaram, desmentiram.
A histeria em torno da morte dos Mamonas realiza o ideal supremo do fã num nível mais global. É a morte que permite concretizar toda a expectativa contida na mitificação.
Na verdade, a morte consegue levar às últimas consequêncas essa ciclópica, extremamente prazerosa e perversa expectativa de fusão e domínio do ídolo transfigurado. Mataram John Lennon por isso.
Ao libertá-lo de seu corpo, a morte oferece o mito pela primeira vez ao arbítrio do fã, sem travos. Vivo, o mito ainda é dependente de uma pessoa concreta, autônoma, com desejos, opções, traços de caráter que podem ser divergentes e, amiúde, antagônicos às inclinações do fã. Mito muito "humano" não dá certo. O fã, para manter sua condição, vê-se obrigado a fazer acertos e concessões, que podem se tornar muito incômodas.
Mitos vivos podem gostar de drogas, ser gays, esnobes, corruptos, indecisos, dirigir e matar em alta velocidade... Mortos, levam para o caixão as últimas barreiras de resistência à adoração. A morte do mito resolve a tensão a favor do fã.
Depois de morto, o mito parece ficar, até fisicamente, mais acessível ao fã. Ao desfigurar o corpo do mito, o acidente trágico, o assassinato ou o suicídio impõem-se como um irresistível convite a seduzir fãs e mídia a se banquetear numa reconstituição idealizada, em que todos estão livres para exercer plenos poderes.
Astros que antes eram "bregas", "vulgares", símbolos da decadência tornam-se "joviais", "bem-humorados", bastiões da irreverência. Guarulhos, conhecida pelo aeroporto, volta a fazer parte do mapa.
Na morte do ídolo, uma ânsia arrasta multidões à conversão atabalhoada, como que a comprar entrada em cima da hora, para ter acesso a um clube seleto de veneradores e assim poder gozar a tempo o clímax do definitivo show, o único dirigido pelo próprio fã.
Nessa "lógica", que não tem nada a ver com as pessoas reais envolvidas e nem mesmo com as generosas intenções manifestadas pelos fãs, ídolo bom mesmo é ídolo morto.

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