São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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Paris tenta iluminar crise com filosofia nos cafés

MARCELO REZENDE
EM PARIS

"Se o Estado de bem-estar social da França está falido, e o país não produz os grandes intelectuais de antes, aos franceses restou uma única coisa. O pensamento." No último dia 18 de fevereiro, do outro lado do Canal da Mancha, na Inglaterra, uma irônica repórter da TV BBC 1 explicava assim, aos britânicos, a mania do fim do inverno e da primavera que se aproximava em Paris: a filosofia nos cafés.
Para a sensibilidade anglo-saxônica há uma espécie de estranheza -ou total insanidade- no fato de parte da população de uma cidade abandonar umas poucas horas de sono a mais de um domingo e invadir, sempre às onze da manhã, os cafés do boulevard Saint-Michel, no Quartier Latin, ou na place de Bastille, para assistir a uma aula sobre "O Todo e o Único", "Os Objetos do Pensamento" ou "A Moral e o Homem".
A moda da "philosophie au café", uma criação do professor Marc Sautet (leia texto abaixo) deixou claro para a imprensa, professores, estudantes e todos os possíveis interessados, que a filosofia era mais uma vez o grande "frisson" da temporada.
Uma moda que ultrapassava o registro meramente intelectual e se expandia em direção aos costumes, vitrines das lojas de roupas e as livrarias de Saint-German-de-Prés que só fecham à meia-noite.
Um mês antes do espanto inglês, em janeiro, o suposto "retour de la philo" começava a ser detectado -e dissecado- pela imprensa francesa. A revista "Magazine Littéraire" chegava às bancas trazendo como matéria de capa o tema "Filosofia, a Nova Paixão".
Uma espécie de porta-voz dos bens culturais franceses que já foram aceitos pela tradição, o "Magazine" levantava um pequeno dossiê da cena filosófica francesa.
Estrategicamente a revista apontava os nomes ascendentes no campo do pensamento e apenas resvalava na história dos cafés, que a essa altura aconteciam não apenas em Paris, mas também em Grenoble, Nice, Estrasburgo e Tolouse. A intenção era estabelecer um status acadêmico a um fenômeno das ruas.
No dia 11 do mesmo mês o jornal "Libération" -ainda uma espécie de representante das aspirações da geração de Maio de 68- publicava um artigo colocando Sautet, o "Magazine Littéraire" e André Comte-Spoville, que vendeu no país 700 mil exemplares de seu "Pequeno Tratado das Grandes Virtudes", na mesma vala.
Para o jornal, a filosofia não podia voltar porque na verdade nunca esteve ausente. E a grande verdade era que a França não tinha novos pensadores. Todos continuavam a ler Sartre, Foucault ou Jacques Derrida, a "estrela" (veja nesta páginas alguns dos pensadores atuais na França).
Descartes e seu erro
O choque entre as publicações terminou comprovando que na França de hoje, não importando a qualidade do serviço oferecido, existe uma procura -e em muitos casos uma exigência- de se pensar, de forma abstrata, sobre os problemas do país e do cidadão.
Ainda que para os ingleses esse tenha sido o verdadeiro "erro de Descartes", condenar toda uma cultura à abstração, os franceses se ressentem de estar vivendo em uma realidade macabra. Nos últimos tempos, têm encontrado com frequência na capa de seus jornais a notícia de que um grande nome de sua cultura "desapareceu". Ou seja, está morto.
Apenas nos últimos cinco meses o país viu morrer os filósofos Gilles Deleuze e Emmanuel Lévinas, os cineastas Louis Malle e René Clément, o etnólogo Pierre Verger e a escritora Marguerite Duras.
E é nesse cenário que os franceses tentam descobrir quem poderá fornecer respostas para a nova realidade da França na Europa unificada, para as graves e os crescentes problemas com a imigração e os testes atômicos realizados pelo presidente francês Jacques Chirac.
Mas, enquanto a maior parte dos parisienses prefere os cafés, outros se dirigem às aulas públicas dos grandes mestres ainda em ação.
Na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em um dos mais frios dias da estação, Derrida fala a um auditório lotado, em sua maioria de estudantes e estrangeiros, que, segundo os funcionários da escola, não são alunos formais, mas eventuais, de Derrida.
Pensar a Política
Seu tema era "A Hostilidade e a Hospitalidade", onde desvenda o nascimento desses conceitos e os liga a sua França de hoje: "O tratado de unificação da Europa guarda, na verdade, um significado implícito: a Europa vê a si mesma como 'O Ocidente', e tenta deixar todos os outros de fora. Nós, aqui na França, empurramos esses 'outros' para o subúrbio".
Três dias antes, nas palestras do "L'Odeon-Théâtre de L'Europe", a resposta acadêmica à filosofia do café, foi a vez do professor Claude Lefort (ao lado de Pierre Pachet e Jacob Rogosinsk) "Pensar a Política". Só que agora, em meio às vaias dos estudantes dos liceus (leia texto abaixo).
Na semana seguinte, uma curiosa pichação era mostrada em uma revista semanal francesa, servindo como ironia para os cafés, palestras e jornais: "Se Deleuze está morto então tudo é permitido".

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