São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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O fulgor teatral de Ziembinski

SÁBATO MAGALDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Responsável pela atualização estética do teatro brasileiro, introdutor do conceito de encenação entre nós, mestre da geração de intérpretes que se iniciaram nos anos 40, mago da iluminação, o maior ator que já tivemos (juízo de Antunes Filho) e criador da "consciência do que é e como se faz teatro" (em sua própria avaliação) -estas são as principais facetas de Ziembinski, minuciosa e competentemente analisadas pelo crítico Yan Michalski (1932-1990), no livro póstumo "Ziembinski e o Teatro Brasileiro".
Yan realizou a sua exaustiva pesquisa durante cinco anos, acompanhando a trajetória de Ziembinski desde o nascimento na Polônia, em 1908, até a morte, no Rio de Janeiro, em 1978. Norteou o trabalho o propósito de levantar toda a produção teatral, certamente a mais significativa do diretor, abstendo-se de examinar o que ele fez no cinema e na TV, e mesmo a vida privada. Apesar das limitações que o ensaísta se impôs, a pesquisa reuniu mais de mil páginas.
Não chegou Yan a dar-lhe redação definitiva, em virtude da morte prematura. Certa vez, ele me disse que necessitava de um distanciamento da obra, para reduzi-la ao tamanho de um livro normal. Ainda assim, enviou-me as conclusões, de cerca de cem páginas, no desejo de ouvir a opinião de um colega de ofício. Gostei imenso da leitura e insisti para que ele apressasse a revisão. A edição final do texto acabou sendo feita por Fernando Peixoto, que teve Johana Albuquerque como colaboradora, e o volume reduziu a pesquisa a 517 páginas impressas, das quais cerca de 40 de expressiva iconografia. Sem o conhecimento do original completo, não se pode criticar com autoridade as opções dos editores. A favor deles, testemunho que as pouco mais de 30 páginas do último capítulo, "Um Ponto de Referência", coincidem perfeitamente com as lembranças que guardei das "conclusões" de Yan.
Para a renovação artística do nosso palco, Ziembinski teve a vantagem da primazia, foragido que era da Polônia quando da Segunda Guerra Mundial, aportando ao Rio, depois de incontáveis peripécias, em 1941. Alguns precursores não foram suficientes para alterar a rotina do nosso profissionalismo, em que prevalecia a presença de um simples ensaiador, destinado a ressaltar a figura do astro, dominando os coadjuvantes, longe da preocupação de decorar o texto e atribuir ao espetáculo uma unidade estilística. Por isso Ziembinski se aplicou no grupo amador de Os Comediantes, que não aceitava as premissas então em voga. Quando o empresário italiano Franco Zampari fundou, em 1948, o Teatro Brasileiro de Comédia, depois de destiná-lo aos amadores locais, pautou-se no exemplo do conjunto carioca e trouxe para São Paulo compatriotas seus, como Adolfo Celi, Ruggero Jacobbi, Luciano Salce e Flaminio Bollini Cerri, acrescentando aos seus nomes, na primeira fase, o de Ziembinski. É ponto pacífico para a crítica ter sido benéfica para todos a interação dos encenadores estrangeiros, aos quais se somaram, em datas diversas, Maurice Vaneau, Gianni Ratto (vindo inicialmente para o Teatro Maria Della Costa) e Alberto D'Aversa.
O mais experiente de todos, em seus países de origem, foi sem dúvida Ziembinski (Ratto era cenógrafo estável do Piccolo Teatro de Milão e Vaneau dirigiu no Teatro Nacional da Bélgica), e o crítico Stanislaw Grzelecki saudou-o, em 1939, na peça "As Colegas", de Krzywoszewski, como "talvez o mais talentoso dos jovens diretores poloneses" (pág. 32).
A notoriedade fulminante de Ziembinski, entre nós, ocorreu com a estréia de "Vestido de Noiva", em 1943 -divisor de águas tanto para a modernização do espetáculo como da dramaturgia (de Nelson Rodrigues) e dos cenários (de Santa Rosa). Nos 37 anos de permanência no Brasil, Ziembinski dirigiu e/ou interpretou 94 peças, das quais ao menos dois terços, por algum motivo, tornaram-se produções de mérito. Yan não se deixou tomar pela adesão irrestrita ao objeto da pesquisa -fenômeno frequente entre os que se debruçam sobre um tema- e julgou de forma isenta o itinerário de Ziembinski, louvado na fortuna crítica, em depoimentos e também nas observações pessoais.
Pontos culminantes na carreira do diretor Ziembinski foram, depois de "Vestido de Noiva", "Desejo", de O'Neill, "Anjo Negro", também de Nelson Rodrigues, "Medéia", de Eurípides (adaptação de Robinson Jeffers), "Uma Rua Chamada Pecado", de Tennessee Williams, "Nossa Cidade", de Thornton Wilder, "Dorotéia", de Nelson Rodrigues, "Pega Fogo", de Jules Renard, "Paiol Velho", de Abílio Pereira de Almeida, "Volpone", de Ben Jonson, "Maria Stuart", de Schiller, "Leonor de Mendonça", de Gonçalves Dias, "O Santo e a Porca", de Ariano Suassuna, "Jornada de um Longo Dia Para Dentro da Noite", de O'Neill, e "Toda Nudez Será Castigada", de Nelson Rodrigues.
Ninguém fugia à força carismática do ator Ziembinski (seus colegas estrangeiros não fizeram carreira nesse domínio). Pessoalmente, lembro-me da criação inesquecível de Efraim Cabot em "Desejo", gravando-se na memória a patética cena da dança; de Jester Lester, em "Tobacco Road", de Erskine Caldwell e Jack Kirland; do Sr. Lepic, em "Pega Fogo"; do papel-título de "Volpone"; do Papaizão, em "Gata em Teto de Zinco Quente", de Tennessee Williams; do Eurico Arabe, em "O Santo e a Porca"; de James Tyrone, em "Jornada de um Longo Dia"; de Max, em "A Volta ao Lar"; de Cotrone, em os "Gigantes da Montanha", de Pirandello; e de Zambor, em "Check-up", de Paulo Pontes. Presença poderosa e magnética, enchendo a cena também com a força da voz, não obstante o sotaque nunca perdido.
Com relação ao desempenho, cabe registrar um aspecto negativo de Ziembinski: às vezes lhe faltava autocrítica para perceber sua inadequação à personagem. Curiosamente, esse problema já havia sido detectado, quando ele tinha 23 anos, pelo seu colega Jerzy Walden, de Lodz, em testemunho de 1970, transcrito por Yan: "Antes de mais nada, o ator Ziembinski está convencido de que pode fazer qualquer papel. Toda vez que lhe cai nas mãos uma peça nova, descobre-se que o papel de maior efeito foi simplesmente criado para ele" (pág. 24). A ausência de desconfiômetro levou-o a interpretar George Elliot em "Quarteto", de Antônio Bivar, infelizmente seu último espetáculo, levado no Teatro Ipanema, em 1976: era constrangedora a tentativa do galã, aos 68 anos, de seduzir uma bela jovem.
Ao longo dos anos, não era mais justo afirmar que Ziembinski transformava os jovens intérpretes em imitadores seus. O livro de Yan esclarece, também, a questão polêmica do expressionismo no estilo das suas montagens. Aliás, com acerto, ele se apóia muito nos comentários de Décio de Almeida Prado, o crítico que melhor fixou as características de Ziembinski. A lentidão condenada em certos espetáculos desapareceu no ritmo impresso a comédias como "Assim Falou Freud", de Cwojdzinski, e "Divórcio para Três", de Sardou.
Yan, com objetividade intelectual irrepreensível, não esconde que Ziembinski, a partir de 1960, "perdeu a sintonia com o espírito de seu tempo" (pág. 373). Adiante, acrescenta: "Por mais disposto que estivesse sempre a ajudar os colegas, Ziembinski no fundo pouco se interessava pelo que os outros faziam, ia relativamente pouco a teatro e pouco se empenhava em captar a essência de propostas artísticas diferentes das suas". É muito justa, embora triste, a constatação do crítico segundo a qual "a impressão que se tem é a de que ele (Ziembinski) tinha uma idéia bastante vaga do que acontecia no teatro brasileiro" (pág. 381). De fato o homem de teatro não procurou se renovar, e apesar do esforço sincero de Yan em reconhecer um desejo de atualização na montagem de "A Celestina", de Fernando de Rojas, em 1969, Ziembinski não fez mais do que se repetir.
Marginalizado por conta própria, mais do que por ação dos outros, embora, ao criar "Check-up", afirmasse em entrevista que "me despeço neste momento, e o que vou dizer não é mágoa nem queixa, mas o teatro já se despediu há bastante tempo de mim" (pág. 349), Ziembinski permitiu que Yan chegasse a conclusão melancólica e correta: "Há, sem dúvida, algo de patético nesse itinerário de um artista que de revolucionário passa a conservador" (pág. 373).
A televisão fez que Ziembinski desse a volta por cima. É preciso reconhecer que ela soube assimilar os ensinamentos do mestre e o recompensou com extrema popularidade e um cotidiano financeiramente digno. Culpa do teatro? Talvez das circunstâncias muito desfavoráveis em que ele é praticado no país. Mas, na história, ficará gravado para sempre que Ziembinski trouxe a modernidade para o teatro brasileiro. Reconhecimento para o qual o livro de Yan Michalski arrola razões irrefutáveis.

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