São Paulo, segunda-feira, 25 de março de 1996
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'Japão para Sarney, jamais', diria slogan

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Inverno no exílio. Grupo de esquerda diante das xícaras fumegantes de café preto. Como organizar o apoio internacional à luta contra o regime militar? O grupo constata que tem uma dezena de simpatizantes em Paris, um casal na Bélgica e decide que vai deslocar alguém do Chile para cobrir a Alemanha. Alguém pergunta pela Argélia e ouve-se a resposta:
- "Na Argélia, tem um cara do PCBR."
Indignado com a ausência de sua pequena organização em Alger, um militante ergue a voz:
- "A África para o PCBR, jamais."
Cada vez que o velho avião presidencial levanta vôo, essa história reaparece na memória. Vivemos uma época de globalização, capitais cruzando fronteiras no ritmo do computador, empresas estendendo seus tentáculos, multiculturalismo. O Brasil segue a onda, mergulha de cabeça no mar cosmopolita mas há sempre alguma coisa no caminho, alguma coisa errada, como se um rabo teimasse em emergir do fraque, denunciando-nos em pleno banquete universal.
Vemos o presidente caminhando na Muralha da China. Os repórteres às vezes o rodeiam, bloqueando sua passagem. Às vezes, caminham com ele, num passo rápido, pequena multidão compenetrada diante dos olhares curiosos dos turistas comuns. Mas o que é a Grande Muralha? Apenas uma metáfora para inúmeros comentários sobre as indecisões do PSDB, sempre em cima do muro.
- O Japão para Sarney, jamais.
O avião do presidente voa pelo mundo como se fosse uma nave espacial sobrevoando a lua. É um território novo mas qualquer sinal de vida, sabemos, será apenas o reflexo de um de nós, outro cosmonauta. Navegamos sobre uma imensa superfície espelhada, onde só existem reflexos, lembranças e distorções do Brasil.
Mesmo para Colombo, índios pelados na praia não podiam jamais ter algum tipo de cultura pois se estavam sem roupa não tinham sequer sido expulsos do paraíso. Seres humanos vestem roupa, desde Adão e Eva.
Portugueses e espanhóis sempre perguntavam pelo ouro. E as respostas na língua que não entendiam eram tidas como adequadas às suas absurdas questões. As primeiras descrições dos índios eram apenas registros de sua diferença, névoas embaçadas no espelho europeu.
Essa tensão entre nós e os outros é uma constante na minha experiência nacional. No exílio, embora dissimulado, um abismo ia se cavando entre os que se voltavam curiosamente para o que viam e os que se agarravam à rotina das feijoadas no sábado, dos carnavais na neve, dois dedos erguidos, "Mamãe, eu quero, mamãe eu quero mamar."
Acontece com os turistas. Era porteiro de um hotel em Estocolmo e vi um hóspede brasileiro falando ao telefone, domingo à noite.
- Papai, quanto foi o Flamengo?
- Perdeu?
- Pô, sacanagem...
Devia ter uns vinte anos o hóspede. Faltava-me intimidade para dizer: tudo o Flamengo perdeu, mas não são nove horas da noite de domingo em Estocolmo, há bares, jazz, soul, um passeio pela cidade velha, quem sabe? Ele estava desolado.
Não se trata de saudade, como a saudade de Rubem Braga que gritava do porto para os recém-chegados tripulantes dos navios brasileiros: farinha, feijão, carne seca. A situação atual se explica melhor com a célebre frase atribuída a Garrincha:
- Roma é aquela cidade em que seu Zezé Moreira tropeçou na escada?
Assim como Garrincha, vamos marcando nossa inserção no mundo: Tóquio é o lugar onde o governo rompeu com Sarney, Bruxelas, quem sabe, é a cidade para onde Antonio Carlos telefonou, Berlim é o lugar onde encontramos Amim.
Fala-se muito em comprar um novo avião para o presidente. Mais moderno e rápido que o atual, chamado pelos jornalistas de Sucatão. Nesse momento em que nossos heróis trocam de veículo, é importante que troquem também de cabeça. Ulisses e Colombo, este de forma limitada, usavam a descrição de uma viagem para começar uma outra. O ciclo jamais se interrompia.
Que pelo menos a descrição da viagem presidencial nos leve a outro lugar, como a de Marco Polo à China acabou impulsionando Colombo a encontrar a América. Se o movimento pelo mundo desembocar sempre numa crise local, por que não ficar em casa vendo TV, comendo batatas fritas e ouvindo a sinfonia das descargas nos minutos de intervalo comercial?

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