São Paulo, quarta-feira, 27 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sobre as drogas e a Aids

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

VICENTE AMATO NETO E
JACYR PASTERNAK
Temos tomado conhecimento, com atenção, de matérias recentemente publicadas sobre o problema do uso de drogas no Brasil contendo propostas para lidar com ele, que abrangem também a prevenção da Aids como decorrência do uso endovenoso.
Alguns pontos despertaram em nós maior interesse, de molde a suscitar continuação dos debates. Embora existam estudos bem executados mostrando que a doação de agulhas e seringas descartáveis pode diminuir a ocorrência da contaminação pelo HIV em toxicômanos (Don de Jarlais e colaboradores, "Journal of the American Medical Association", outubro de 1995), todos foram realizados em cidades nas quais a droga abusada é a heroína, sucedendo além dessa tática intenso trabalho educativo não só para alertar os aditos quando ao risco pertinente à Aids, mas também para considerar a adição de tóxicos de per si e, nos cinco locais onde o sistema deu certo (Sidney, Lund, Glasgow, Tacoma e Toronto), as providências citadas tiveram lugar quando a porcentagem de viciados infectados pelo HIV era baixa.
Ninguém até hoje, no mundo, concretizou projeto a fim de avaliar o papel de troca de agulhas e seringas num contexto onde já há alta taxa de aditos contaminados e a droga mais abusada é a cocaína, como em São Paulo e Santos, por exemplo. Não somos contra qualquer manobra que possa diminuir o contingente de Aids, contudo, é fundamental que antes de implantar programas sejam valorizadas conclusões obtidas cientificamente: é maldito costume brasileiro enveredar pelo contrário, ou seja, estabelecer primeiro e aquilatar depois, com a natural consequência de introduzir planos inúteis.
A observação de um jurista de que uso de drogas deveria ser objeto e cuidado dos serviços de saúde, mais do que da lei, é discutível. Na verdade, não conhecemos até hoje os motivos para emprego das drogas, incluindo as consideradas legais, ilustradas por álcool ou fumo, e as ilegais; convindo aduzir que não sabemos como deve ser essa prática do ponto de vista social. O serviço de saúde é parte a ser ouvida, seguramente, quando o assunto é debatido, porém, isoladamente não possui o direito de decidir algo que está inserido num contexto social. Em outros termos, o autoritarismo médico seria algo tão ruim como foram outras modalidades e nenhum estamento pode ou deve, sozinho, decidir a respeito de conflitos sociais.

Vicente Amato Neto, 67, infectologista, é professor titular e chefe do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

Jacyr Pasternak, 53, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da USP.

Texto Anterior: 4 crianças consomem veneno em creche de SP
Próximo Texto: Telefones de 6 bairros param de funcionar
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.