São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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A âncora e o velho capitão

DALMO MAGNO DEFENSOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na capa do LP "Atom Heart Mother", do Pink Floyd, há uma fleumática vaca leiteira. Sob céu azul, pisando um viçoso pasto inglês, ela dirige ao fotógrafo um olhar digno, sereno, sem imaginar o transtorno que suas bisnetas enlouquecidas causariam 26 anos depois.
Clássico do rock progressivo, "Atom Heart Mother" rivalizou com discos célebres como "Led Zeppelin III" e "In Rock", este do Deep Purple, no topo das paradas britânicas.
O disco fez menos sucesso no Brasil, mas parte dele foi mais ouvida aqui do que na Inglaterra: no início dos anos 70, um excerto da canção "Summer'68" foi usado na abertura do "Jornal Nacional", da qual a atual vinheta descende remotamente.
Assim como o "JN" incorporou "Summer'68", telespectadores fizeram do "JN" parte integrante da sonoplastia doméstica. Da mesma forma que associo a "Voz do Brasil" a engarrafamentos de trânsito, pois a ouço (por injusta falta de opção) na volta do trabalho, ouvir o "JN" significa estar em casa; é confortante.
É como se a vinheta terminasse no "bzz!" do acendedor de fogão, Cid Moreira lesse ao ritmo da panela de pressão, o falar metálico de Sérgio Chapelin se confundisse com o entrechocar de talheres, e os créditos finais informassem quem pôs a mesa e quem lavou o alface.
Por estranho que possa parecer, na TV não há nada mais familiar do que os sons estéreis, engessados, do "JN".
Todavia, esse aspecto, digamos, afetivo, não me impediu de contribuir modestamente para a queda de audiência do "JN" nos últimos anos.
Diz-se que os programas têm características humanas: há os agitados, como "Esporte Espetacular"; descolados, como "Metrópolis", e sisudos, como "Brasil Pensa". Pois o "JN" me parece, numa palavra, antipático.
Não dá para não implicar com um jornal que só mostra "bolas dentro" de um candidato e deslizes do outro na reportagem sobre um debate eleitoral; que ignora um GP de Indy realizado no Brasil, mas transmitido pelo concorrente; que, em vez de dar manchete para um imparcial "Cai a inflação", proclama "Inflação surpreende os pessimistas".
Agora, parece, o "Jornal Nacional" vai ser arejado. Entram os âncoras Lillian Witte Fibe e William Bonner, e saem (os bóias?) Sérgio Chapelin e Cid Moreira, este voltando esporadicamente para expressar as opiniões "da casa".
Não sendo tão bem-humorada quanto Lúcia Soares, da Band, nem tão irritadiça quanto Boris Casoy, dificilmente Lillian será vista às gargalhadas ou dando "bananas", mas dará um ar menos grave e mais inteligente ao "JN". Resta saber se a Globo, tão dada à descontração quanto lordes diante da rainha, não terá reações alérgicas à presença de improvisos e personalismos em sua principal vitrine.
O "JN" está no ar há 26 anos. Descontando-se 52 domingos anuais, chega-se à impressionante marca de mais de 8 mil programas. Só com os "boas-noites" finais, Cid Moreira gastou mais de duas horas, supondo que cada cumprimento tenha durado um mísero segundo.
Sentirei falta do velho Cid, grande leitor de notícias. Pena que ele não possa ir a um programa de entrevistas longas, como o "Onze e Meia" ou o "Roda Vida", para falar à vontade sobre sua carreira.
Minha esperança é que Lillian Witte Fibe chute o pau da barraca já no primeiro dia, chamando Cid ao balcão do "JN", de surpresa, para lhe repetir o primeiro verso de "Summer'68":
"Você gostaria de dizer algo antes de ir embora?"

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