São Paulo, quinta-feira, 4 de abril de 1996
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Síndrome de Cafuringa

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Não sei se vocês por acaso se lembram do Cafuringa, um crioulo retinto que jogou como ponta direita no Fluminense do Rio nos anos 70. Em mais de um sentido, era um jogador extraordinário, um atacante de primeira, batalhador e, sobretudo, um grande driblador.
Naquela época, os brasileiros buscavam um ponta direita que sucedesse a Garrincha. Agora sabemos que isso é impossível, mas naquele tempo a lembrança do Garrincha era recente e, sempre que aparecia um ponta excepcionalmente habilidoso, ressurgia a esperança. Cafuringa foi uma dessas esperanças.
Mas ele tinha um defeito grave, uma espécie de trauma profundo e inexplicável: não sabia, simplesmente não sabia finalizar. Driblava o time adversário inteiro, construía as jogadas sozinho do começo ao fim e chutava para fora.
Era um drama. Uma frustração coletiva da torcida do Fluminense e até mesmo (desconfio) das outras torcidas. Ninguém se conformava em ver uma grande promessa desperdiçar tantas oportunidades.
O problema foi adquirindo proporções graves. Era um assunto constante da imprensa esportiva. E, sobretudo, um drama pessoal. A cada jogo do Fluminense, criava-se a expectativa: será que hoje o Cafuringa faz um gol?
Houve uma época em que o Fluminense atravessava fase excelente e Cafuringa andava "comendo a bola", como se dizia na época. Mas não fazia gol. Passavam-se os meses e nada. Um jejum excruciante, total e completo.
Nessa ocasião, fui assistir a um jogo do Fluminense no Maracanã. Logo no início, Cafuringa entre pela direita, passa por um, por dois e... chuta fora.
Mais uns 15, 20 minutos e a jogada de sempre: o drible perfeito, irretocável, seguindo da finalização bisonha.
A angústia era geral. A torcida do Fluminense já não torcia apenas pela vitória do time, queria uma vitória com gol de Cafuringa. Imagino que até a torcida adversária compartia, de alguma maneira, a aflição do jogador e torcia por -ou pelo menos admitia- esse gol.
Foi aí que veio o momento perfeito, inesquecível. Lembro-me como se fosse hoje.
Cafuringa recebe uma bola pela direita, meio dividida, ganha o lance, dribla um marcador e, na saída do goleiro, toca para o fundo da rede!
A emoção que tomou conta do jogador e do estádio não é fácil de descrever. Foi uma explosão. Se disser que foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida, não estarei mentindo nem exagerando. (Mesmo hoje, ao relembrar, as lágrimas me voltam aos olhos.)
Quando Cafuringa se aproximou da beira do gramado, do lado da arquibancada em que estava a torcida do Fluminense em festa, e se ajoelhou, o Maracanã nadava em lágrimas.
O próprio juiz terá tido ímpetos de cumprimentar o jogador. E, se tivesse havido alguma irregularidade no lance, nunca, jamais, em hipótese alguma teria coragem de anulá-lo, pois quem era Cafuringa senão a encarnação de um drama coletivo?
E o que era aquele gol senão a superação simbólica das antigas e arraigadas frustrações do brasileiro comum?
Naquele instante, Cafuringa foi uma figura emblemática.
Bem, o meu espaço está acabando e, como isto não é a seção de esportes, preciso arrumar logo uma explicação plausível para essa conversa toda.
Eis aonde queria chegar: o brasileiro não sabe finalizar e tem uma grande dificuldade em completar o que começa. Somos 150 milhões de Cafuringas.
A política econômica do país não escapa desse padrão. Quantos começos brilhantes não tivemos nos últimos anos! O Cruzado foi o mais impressionante desses episódios.
O Real teve um início inspirado com a URV, um drible na inflação digno do Cafuringa e até do Garrincha.
Mas não será possível sustentar a estabilização monetária e reconciliá-la com os objetivos maiores de desenvolvimento e distribuição da renda sem um esforço sistemático para ajustar as finanças públicas de forma duradoura. Sem resistir à pressão dos segmentos do setor público e da plutocracia privada que querem viver à sombra dos favores do governo federal. Sem corrigir o câmbio e baixar os juros.
Apoiado precariamente na ancoragem cambial, nos juros altos e nos humores do volátil mercado financeiro global, o Real afundará no desemprego e na crise cambial.
Acabará tendo um desfecho tão bisonho como as finalizações habituais do Cafuringa.

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